Rita Azevedo Gomes e o nevoeiro em três dimensões
Há um sentimento de repetição, não em Rita Azevedo Gomes devo dizer, mas em mim, que tenho acompanhado a sua obra e que nunca obtive o privilégio de “presenciar” a realizadora das “imagens em transe” nem o “para aí além”. Sempre deparei-me com o fenómeno como uma espécie de exagero subtilmente implantado entre nichos como resposta a um cinema que tem se espalhado fora desse concentrado de adornos intelectuais e ócios comumente replicados, tendo como centro a Cinemateca (o qual trabalha como programadora), a raiz de toda uma ideologia cinematográfica que por aí expande ou fomenta. Basta verificar nos seus defensores do outro lado do Oceano Atlântico, que por um lado olham para o Cinema Português de uma forma limitada ou a encaram como uma homogénea demanda, nunca sobressaindo das linhas oliverianas ou cesarianas, e por vezes tendo em conta uma trajetória própria de Pedro Costa.
Quanto a Rita Azevedo Gomes, novamente cito João Bénard da Costa, ator-convidado ao seu "Frágil como o Mundo” (a sua melhor obra até à data) em que explicita um nevoeiro que amedronta os corações dos Homens, essa mesma neblina, desconhecida salienta-se, empesta o potencial de uma realizadora em conseguir um cinema que seja seu por direito, e que não invoque as auras tidas de um Oliveira, de um César Monteiro ou até mesmo do artista plástico Luís Noronha da Costa (o qual Rita Azevedo Gomes trabalhou como atriz e assistente de realização no ainda muito obscuro “O Construtor de Anjos”, em 1978).
Por outras palavras, sempre espero mais dela do que meros “filmes para amigos e para específicos amigos”, ou o reconhecimento por detrás daquele travelling serpenteado nos aposentos da decadente duquesa em “A Vingança de uma Mulher” (2012) ou do cuidadoso mise-en-scène em “A Portuguesa” (2018), exista um temor em desconstruir as suas práticas e conhecimentos em prol de uma linguagem própria e desafiante. No fim de contas, Rita Azevedo Gomes constrói quadros de natureza morta, de estagnada vida que por lá reside. Na chegada de “O Trio em Mi Bemol", com base numa peça de Eric Rohmer e o tormento que é em (re)adaptá-la à televisão e por sua vez ao cinema, sou hipnotizado com a seguinte imagem: Rita Durão (atriz-fetiche do cinema de Gomes), “escondida” na quietude da noite, fumando o seu cigarro anestésico, apenas “acompanhada” pela lua cheia que de “braços abertos” abraça-a assim como o mar de costas voltadas para a mesma. Bela imagem, confesso, ressaltando o olho pitoresco e de preciosa perspetiva renascentista da realizadora.
Quanto ao resto … porém, o resto é fazer teatro escorrer em trajes cinematográficas, enriquecendo em planos conjuntos que desafiam o oscilar das diferentes dimensões. Só que a esta altura do campeonato, os involuntários propósitos de Rita Azevedo Gomes confundem com os propósitos do enredo, transformando tudo aquilo num programa televisivo. Se em parte os dilemas e bloqueios criativos do realizador empenhado à tarefa (Adolfo Arrieta) tentam conduzir o filme para além da sua matéria-prima, por outro, e aproveitando a deixa da assistente de realização a este veterano nos primeiros minutos de “O Trio em Mi Bemol” - “Tudo é uma grande farsa" - não poderíamos estar mais de acordo, os alicerces enferrujados estão à vista de todos, e nem sempre é por culpa da artesã, porque como a própria adianta em prólogo -“Este filme só existe graças à colaboração desinteressada de todos os que nele participaram”. No fundo o que está implícito é um exercício, e como todos os exercícios não existe muito mais além do ato de exerção do mesmo. O nevoeiro continua por trespassar.
“Feliz por fora, triste por dentro”