Reparação Histórica?
Às portas do meio académico, fora das paredes onde o debate em torno do acesso ao conhecimento se prolonga entre jovens pensadores e outros interlocutores, discute-se a vinda de 26 artefactos históricos do Louvre para o Senegal. Entretanto, um vendedor de rua organiza os seus livros numa estante improvisada — um simples manto estendido no chão, para sermos mais precisos. Sem grandes preâmbulos, a câmara instala-se nesta sua “montra”, onde vemos obras de Voltaire, Rousseau e até Petitfils, partilhando espaço com o inevitável Cheikh Hamidou Kane. Trata-se de uma espécie de utopia filosófica ilusória, em que o pensamento ocidental ainda predomina, obscurecendo a riqueza do pensamento subsariano. A imagem que se desenha, porém, é derrotada pelas intensas discussões que envolvem as figuras em cena, os tais académicos ou livres-pensantes. Fala-se desde reflexões e críticas sobre a natureza da “doação”, até ao conceito ocidentalizado de museu e à pertinência destes objetos museológicos no Senegal contemporâneo. Por entre este emaranhado de ideias, surge uma tertúlia pontuada por perguntas sem resposta e respostas sem as perguntas adequadas.
“Dahomey”, o premiado documentário de Mati Diop (“Atlantique”) - Urso de Ouro em Berlim - vive deste olhar, desta análise, desta (a)provação. Não se trata de um discurso único nem ditado por agendas, o filme repousa nos jovens, sedentos de ideias e visões culturais pan-africanas, e é precisamente na sua inquietação que o documentário encontra o seu devido tom. Não há certezas absolutas, mas sim incertezas deliberadas. Reparações históricas? É fácil falar delas, mas o que significam verdadeiramente?
Fazendo um breve parênteses, recordo da busca do maliano cineasta Manthia Diawara da casa arquitetada por Ângela Ferreira no seu “Maison Tropicale” (2008). O artefacto de interesse cultural foi removido no fim da era colonialista e transladado para um museu europeu. Num dado momento, o filme debate-se sobre a possibilidade de uma devolução, porém a aceitação do projeto num museu estrangeiro como uma forma de preservação, perante as frágeis instituições do Mali e a sua incapacidade de proteger a própria história, é colocada em cima de mesa por alguns naturais, nomeadamente acadêmicos do ramo. O que clarifica que o assunto “Reparações Históricas”, por vias de um retorno cultural, não é consensual até mesmo nos países interessados.
Feito o parênteses, voltando a “Dahomey” [título alusivo ao extinto Reino de Daomé], Mati Diop começa a sua “viagem” com uma certeza: o regresso dos 26 artefactos de Paris ao Benin, Senegal, o seu esperado “regresso a casa”. O filme adota uma abordagem semi-wisemaniana, observacional e sem interações diretas, mas com uma câmara atenta que, mesmo sob curto tempo de antena, incide criticamente sobre o museu e o processo de restituição. Nesse sentido, faz lembrar o esforço hercúleo de Nicolas Philibert em “Louvre City” (1990), mas num sentido inverso, e não o descarte de um fragmento de um vasto acervo.
Diop, no entanto, tenta apelar a um chamamento ancestral a toda esta recolocação. Há uma estátua — o número 26 — que, como num debate existencial, parece ecoar uma voz numa eternidade obscura. Existe um lado xamânico, característico do cinema de Diop, que anseia libertar-se, uma vocalização que transcende o tempo e o Homem. Contudo, esse elemento reforça um lugar-comum: o da África mística, incompreendida. Este chamamento parece supérfluo em relação ao que o filme realmente procura estabelecer: o foco numa discussão essencial, por vezes, desvirtuada por radicalismos oriundos do Primeiro Mundo. Um megafone dando ao espiritualismo desvirtua esse vínculo para com Mundo real e físico, onde estes objetos e as suas culturas se inserem.
Em “Dahomey”, os verdadeiros protagonistas falam por si, sem depender de intermediários. Nós, espectadores, limitamo-nos a ouvir e a refletir.