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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Quem quer vendar os cineastas de intervenção?

Hugo Gomes, 29.01.25

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Mohammad Rasoulof, O cineasta político iraniano? Hipocrisia, tendo em conta que o Irão fervilha nessa corrente de cineastas em inversão aos interesses do Estado. São vozes, maioritariamente silenciadas, que, para contornar a censura e as consequências agravosas, estabelecem pacto com a alegoria e a subtextualidade. Contudo, cada vez mais assertivos na mensagem. O Ocidente alimenta-se dessa fúria, emoldurando-os numa vaga de cinema iraniano difundido por festivais e escolas. Rasoulof lidera, sempre a pisar nos calos do sistema, essa provocação, esse ativismo urgente de punho mais do que cerrado e peito aberto às balas, conduzindo um cinema que não mata, mas, parafraseando o saudoso Raul Solnado, desmoraliza e muito a escadaria do Poder.

Talvez o crescente interesse sobre o realizador e a sua ascensão nesse estatuto de cineasta de intervenção se deva sobretudo ao anterior invicto Jafar Panahi, agora encostado ao meio rural, saboreando as suas parábolas de reinante obscuridade (“3 Faces”, “No Bears”). Porém, nessa linha, devemos salientar o nome de Ali Ahmadzadeh — cujo "Critical Zone" abocanhou o prémio principal de Locarno em 2023 —, e já apontado como um avançado na quebra de tabus estabelecidos.

Entre os filmes do momento, absorvido pela atenção ocidental, "The Seed of the Sacred Fig" insere-se na sua alegoria familiar. Laureado com o Prémio Especial do Júri em Cannes, enraíza-se no terreno fértil da indignação coletiva, solo nutrido pelos protestos desencadeados após a trágica morte de Mahsa Amini, em 2022 — jovem arrancada à vida pelas mãos da Polícia dos Costumes, numa punição que refletia o peso insuportável das normas do "hijab". Imagens amadoras e clandestinas dessa indignação intercalam a narrativa, induzindo um senso de zeitgeist que arrasta tanto espectadores como personagens para a atuação do contexto político-social.

Enquanto isso, no seio de uma família — não uma qualquer, mas a de um juiz do Tribunal Revolucionário de Teerão, recentemente promovido —, Iman (Misagh Zare) vê-se encurralado por um acontecimento “banal” e perturbador: o desaparecimento da sua arma — símbolo inequívoco do poder estatal — dentro de casa. Essa ausência, sombra corrosiva, ameaça não apenas a reputação profissional, mas também a estabilidade do lar. Na tentativa de resgatar o objeto perdido, Iman torna-se uma figura inquisidora, tensionando a relação com a esposa (Soheila Golestani) e as filhas (Mahsa Rostami e Setareh Maleki), estas últimas profundamente envolvidas no turbilhão das revoltas.

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É na pele da esposa que o filme adquire intenção. Não persuadir uma verdade, mas usar o seu estatuto de cônjuge, mãe e doméstica como ponto de partida para a alegoria, equiparável à Caverna de Platão. O primeiro choque com a realidade humana dá-se na sua descrença, plena confiança nos meios comunicacionais — a televisão, aqui instrumento propagandista estatal, alterador da verdade — e na função do marido, que vindo dele apenas e somente a “verdade inquestionável”. Neste papel de estabilizadora doméstica, insurge-se contra verdades e mentiras: manter a paz dentro das quatro paredes, mas a que custo? O filme avança através desse questionamento, dessa resistência, culminando na entrega e combate à Ordem estabelecida. Iman converte-se no catalisador bruto da ordem e da tradição opressora, e a arma, o macguffin simbólico, concentra o peso de um Poder destituído e a procura da sua restituição, num conflito silencioso desembocado num último ato de completa anarquia familiar. Mulheres unidas para derrotar a essência de uma ordem patriarcal encarnada num pai que se revela tirânico.

Esse jogo de tensões, elástico prestes a romper, culmina numa extraordinária potência imagética. As imagens, meticulosamente arquitetadas, transcendem o literal, insuflando um imaginário revolucionário que ecoa muito além da tela. A arma, a poeira, a mão hirta do defunto / derrotado — assim dito para evitar revelações excessivas — constroem uma gramática visual que é, simultaneamente, um statement e um grito abafado, e igualmente libertador. Uma observação de um regime sustentado não apenas pelos pilares do patriarcado, mas pelos véus densos de um fundamentalismo que tudo encobre.

No fim de contas, um thriller sem suavizações politizadas, um megafone que brada bem alto a sua mensagem, com direção ao Mundo, aproveitando a sua globalidade enquanto ainda pode, e nessa linguagem, como digamos universal, o cinema, as imagens, a suas causas-efeitos. O Ocidente aplaude, premeia, Rasoulof arriscou o pescoço... mais uma vez, no seu gesto mais gritante desde o clandestino "Manuscript Don’t Burn" (por cá, apenas exibido no encerramento de uma edição do Doclisboa). A sua estirpe como realizador da revolução ainda está por vir, mas, por agora (e ainda), é apenas um fazedor de cinema como ato de resistência.