Que os mundo dos mortos seja o palco da tua vingança ...
Através da imprensa, ficou-se a saber que foram tomadas precauções rigorosas durante as filmagens de "The Crow". Segundo consta, nenhuma arma "real" foi utilizada nas sequências de ação (que contam com múltiplos tiroteios), provavelmente sob a sombra do fatídico caso de "Rust" (a produção de Alec Baldwin ainda a preencher manchetes), assim como pela memória do original de 1994. Nesta decisão nenhuma crítica “disparo”, contudo, é por estas mesmas cautelas que ressalta o facto de que, independentemente do número de versões, qualquer adaptação deste "anti-herói" das páginas de James O'Barr nunca conseguirá emancipar-se da sua assombração.
Como bem sabem, há vinte anos, Brandon Lee, filho de Bruce Lee, em ascensão na indústria, preparava-se para alcançar o esperado estrelato com a adaptação de "The Crow", mas, estranhamente, uma arma carregada presente no set ditou o seu trágico fim. Lee eternizou-se à custa dessa tragédia, que, ironicamente, auxiliou o sucesso do filme e impulsionou a carreira do realizador Alex Proyas, alimentando mitos em torno do projeto, desde uma maldição sobre a família Lee (recordando que Bruce Lee também faleceu a meio de uma rodagem - "Game of Death", de Robert Clouse, em 1978) até à ideia de uma anátema associada ao corvo. Apesar das sequelas de baixo orçamento, lançadas em modo direct-to-video, os estúdios nunca esconderam o desejo de ressuscitar a história, e foi preciso aguardar duas décadas, com inúmeros falsos começos (muitos projetos anunciaram-se e morreram logo de seguida) para chegarmos a esta adaptação gótica desajustada, com a assinatura de Rupert Sanders, um um “tarefeiro” sem grande expressão, convém afirmar ("Ghost in the Shell", "Rise of the Planet of the Apes").
Mas, voltando ao início da "conversa": qualquer "The Crow" que seja trazido ao ecrã será sempre associado ao filme de 1994 e aos eventos que o envolveram. Uma versão como esta, mesmo tentando distanciar-se, acaba por nos conduzir àquela memória coletiva; a dissociação é inevitável, pois desde a sua génese, está estabelecida uma comparação e como sabemos, não podemos voltar a 1994; as audiências exigem outros elementos, mas nem por isso são menos ou mais exigentes. Enquanto o filme de Proyas era mais direto na sua narrativa trágica, aqui, somos encurralados num romance que dá origem ao pacto mefistotélico. Bill Skarsgård (“It”), o novo "corvo", e a artista musical FKA Twigs, sua "Julieta" de todos os terrenos, vivem um amor vampírico que desespera pelo gótico-pop que caracteriza este universo, uma "palha" que tenta estabelecer no espectador uma sensação de amor "bigger than life".
Infelizmente o trágico parece ser injustificável à particularidade que levará à compaixão da ave negra, e fora disso a postura inteiramente sonolenta de Twigs dissipa qualquer compaixão à sua figura, de certo ambígua e relevante para o coração da trama. Skarsgård, por sua vez, oferece as ferramentas óbvias para justificar esta nova incursão (o olhar de desalento que o acompanha é a sua personagem), mas até o filme encontrar o seu tino (há uma clara falta de ritmo), o seu lamento revela-se deplorável, numa busca por uma gravidade que Sanders parece incapaz de alcançar.
No entanto, é quando a maldição se interioriza na sua magnificência que a violência "R" manifesta as suas liberdades e libertinagens, com coreografias de violência gratuita (da autoria do stunt coordinator Adam Horton, "Mission: Impossible") a preencher os requisitos operáticos. Curiosamente, é na Ópera, sob os acordes de "Robert le diable" [ópera francesa composta por Giacomo Meyerbeer, entre 1827 e 1831], que a magnificência da sua produção é nos descortinada. Para um filme com cuidado em não mesclar legados e tributos, a sua dose generosa de pólvora e mutilações por via de katanas japonesas é um “fuck off”, um malabarismo de cinismo e dos propósitos de uma produção como esta - “queremos ação porque o sabemos fazer, enquanto que o drama, a sua Humanidade, nem por isso”.
Mas fora o ato de ocasional génio do seu género que se vai com a sua alegórica queda do pano, resta-nos um anti-clímax, um romantismo demagogo e pacóvio, e pouco mais. Promete sequela, mas o medo dos fantasmas de 1994 está bem presente; "The Crow" prossegue numa vitória artificial sobre as suas amarras. Vénia a Brandon Lee, um beijo na mão e seguimos com a nossa vida, o corvo vem logo atrás.