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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Que os mundo dos mortos seja o palco da tua vingança ...

Hugo Gomes, 22.08.24

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Através da imprensa, ficou-se a saber que foram tomadas precauções rigorosas durante as filmagens de "The Crow". Segundo consta, nenhuma arma "real" foi utilizada nas sequências de ação (que contam com múltiplos tiroteios), provavelmente sob a sombra do fatídico caso de "Rust" (a produção de Alec Baldwin ainda a preencher manchetes), assim como pela memória do original de 1994. Nesta decisão nenhuma crítica “disparo”, contudo, é por estas mesmas cautelas que ressalta o facto de que, independentemente do número de versões, qualquer adaptação deste "anti-herói" das páginas de James O'Barr nunca conseguirá emancipar-se da sua assombração. 

Como bem sabem, há vinte anos, Brandon Lee, filho de Bruce Lee, em ascensão na indústria, preparava-se para alcançar o esperado estrelato com a adaptação de "The Crow", mas, estranhamente, uma arma carregada presente no set ditou o seu trágico fim. Lee eternizou-se à custa dessa tragédia, que, ironicamente, auxiliou o sucesso do filme e impulsionou a carreira do realizador Alex Proyas, alimentando mitos em torno do projeto, desde uma maldição sobre a família Lee (recordando que Bruce Lee também faleceu a meio de uma rodagem - "Game of Death", de Robert Clouse, em 1978) até à ideia de uma anátema associada ao corvo. Apesar das sequelas de baixo orçamento, lançadas em modo direct-to-video, os estúdios nunca esconderam o desejo de ressuscitar a história, e foi preciso aguardar duas décadas, com inúmeros falsos começos (muitos projetos anunciaram-se e morreram logo de seguida) para chegarmos a esta adaptação gótica desajustada, com a assinatura de Rupert Sanders, um um “tarefeiro” sem grande expressão, convém afirmar ("Ghost in the Shell", "Rise of the Planet of the Apes"). 

Mas, voltando ao início da "conversa": qualquer "The Crow" que seja trazido ao ecrã será sempre associado ao filme de 1994 e aos eventos que o envolveram. Uma versão como esta, mesmo tentando distanciar-se, acaba por nos conduzir àquela memória coletiva; a dissociação é inevitável, pois desde a sua génese, está estabelecida uma comparação e como sabemos, não podemos voltar a 1994; as audiências exigem outros elementos, mas nem por isso são menos ou mais exigentes. Enquanto o filme de Proyas era mais direto na sua narrativa trágica, aqui, somos encurralados num romance que dá origem ao pacto mefistotélico. Bill Skarsgård (“It”), o novo "corvo", e a artista musical FKA Twigs, sua "Julieta" de todos os terrenos, vivem um amor vampírico que desespera pelo gótico-pop que caracteriza este universo, uma "palha" que tenta estabelecer no espectador uma sensação de amor "bigger than life". 

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Infelizmente o trágico parece ser injustificável à particularidade que levará à compaixão da ave negra, e fora disso a postura inteiramente sonolenta de Twigs dissipa qualquer compaixão à sua figura, de certo ambígua e relevante para o coração da trama. Skarsgård, por sua vez, oferece as ferramentas óbvias para justificar esta nova incursão (o olhar de desalento que o acompanha é a sua personagem), mas até o filme encontrar o seu tino (há uma clara falta de ritmo), o seu lamento revela-se deplorável, numa busca por uma gravidade que Sanders parece incapaz de alcançar. 

No entanto, é quando a maldição se interioriza na sua magnificência que a violência "R" manifesta as suas liberdades e libertinagens, com coreografias de violência gratuita (da autoria do stunt coordinator Adam Horton, "Mission: Impossible") a preencher os requisitos operáticos. Curiosamente, é na Ópera, sob os acordes de "Robert le diable" [ópera francesa composta por Giacomo Meyerbeer, entre 1827 e 1831], que a magnificência da sua produção é nos descortinada. Para um filme com cuidado em não mesclar legados e tributos, a sua dose generosa de pólvora e mutilações por via de katanas japonesas é um “fuck off”, um malabarismo de cinismo e dos propósitos de uma produção como esta - “queremos ação porque o sabemos fazer, enquanto que o drama, a sua Humanidade, nem por isso”. 

Mas fora o ato de ocasional génio do seu género que se vai com a sua alegórica queda do pano, resta-nos um anti-clímax, um romantismo demagogo e pacóvio, e pouco mais. Promete sequela, mas o medo dos fantasmas de 1994 está bem presente; "The Crow" prossegue numa vitória artificial sobre as suas amarras. Vénia a Brandon Lee, um beijo na mão e seguimos com a nossa vida, o corvo vem logo atrás.