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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Quando Stalin conheceu Cristo ...

Hugo Gomes, 05.01.23

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Estou cansado, fecho os olhos e só vejo o Futuro.

O cinema de Aleksandr Sokurov ostenta uma veia museológica, não se limitando ao recorrente tema do Museu como espaço e núcleo gerador das suas experiências cinematográficas (a proeza de “Russian Ark” [2002], rodado em um só take, ou até o pouco falado “Francofonia”), e sim, no intuito de envergar por uma vitrine direcionada ao século XX, onde um punhado de “figuras históricas”, ou símbolos (de forma a enaltecer o respetivo lado mitológico de muitos deles), são induzidos em reflexões latentes e toda uma gíria jocosa e analítica em seu redor. 

O russo Sokurov fala da História para lá do senso crítico, sublinhando o sentido criativo possibilitado pela mesma, e “Fairytale” é mais um dos resultantes desses diálogos interiores, a sua colectânea de “achados” históricos ao uso de um “proveito cinematográfico”, porém, desviando-se da forte composição narrativa da sua quadrilogia do Poder [“Moloch”, “Taurus”, “The Sun”, “Faust”], mas conservando o motor da mesma (o período histórico como maquete). 

Imaginemos o seguinte cenário: Stalin, Hitler, Mussolini e Churchill, inegavelmente as “estrelas” do passado século, despertam do seu ininterrupto sono no Limbo, aí seguem trilho acima por vales e penhascos dantescos em direção aos Portões dos Céus (“os melhores cristãos são os comunistas”, assim vende o soviético o seu “peixe”). Vale a pena ressaltar que pelo caminho depararão com Jesus Cristo e Napoleão Bonaparte, evidentes influências e inspirações que tão bem compuseram estas figuras. Uma premissa para além do surrealista, imaginada literatura de Dante contorcida em vestes de atualizadas políticas, só por este “pitch”, teríamos a merecer um projeto diabolicamente criativo e complexo quanto à concepção e abordagem. Mas Sokurov surpreende, quer dizer, vindo dele surpresa não é inteiramente uma palavra espontânea, visto que o rigor técnico e mais que isso a proeza hercúlea com que encara formalmente os seus filmes leva-nos a isto (ensaios que nos conduzem ao limite das suas forças. 

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O cineasta prometeu-nos quatro protagonistas históricos no Além (os delineadores do Velho Mundo contemporâneo), e assim foi, os próprios, possíveis através de uma tecnologia em função de arquivos. Os seus rostos “animados” prevalecem para fora do seu tempo e do Tempo em questão, são personas múltiplas, esmagadas pelos seus "pensamentos", pelos seus feitos desvanecidos enquanto castigos naquele Inferno improvisado, falam de filosofias pessoais, renegam a redenção, pregam aos seus motivando Guerras “Santas” sem uso algum. Sokurov joga-se para os braços destas mesmas “personagens”, eles nos guiam pelos becos da sua Eternidade como Virgil encarregou-se, levando pela mão Dante Alighieri através dos Nove Círculos Infernais em busca da sua amada Beatrice

Neste caso o quarteto procura aquilo o qual incessantemente procuravam em vivos, a sua evangelização (“religião é uma doença psíquica"), o seu pedaço de História marcado a punho de ferro e fogo de trincheiras, mas “Fairytale”, esse conto de fadas, é um jogo cruel, virtuosos e exuberante quanto ao seu conceito, para que no final seja digno de “conversas de urinol” do qual política e belicismo são falados na trivialidade do quotidiano. 

“Não há lugar para melancolia, não ouçam o Sokurov, avancemos.