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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Quando o romance prevalece como a maior das epopeias

Hugo Gomes, 23.08.14

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Primeiro de tudo esqueçam as polémicas em volta das extensas cenas de sexo (que segundo as más-línguas roçam a pornografia) e concentrem-se na própria simplicidade que “A Vida de Adèle” (“La Vie d'Adèle - Chapitres 1 et 2”), a quarta e triunfante obra de Abdellatif Kechiche, emana. Obtendo o mérito de conquistar a Palma de Ouro do último Festival de Cannes, num ano em que o júri era presidido por Steven Spielberg, “A Vida de Adèle” é baseada numa banda desenhada de Julie Maroh, “Le Bleu est une Couleur Chaude”, a história de amor entre uma jovem subjugada aos seus dilemas emocionais, Adèle (Adèle Exarchopoulos), com uma estudante de Belas-Artes, a lésbica assumida de cabelo azul, Emma (Léa Seydoux).

Este é um filme sobre relações afetivas, os polos positivos e os negativos que irão gerar fervorosas paixões consumidas. Trata-se de um retrato sobre dois seres que desafiam as próprias barreiras das convenções sociais em prol do amor e da cumplicidade, uma relação que é preservada, mas não eterna perante a distância intrínseca que se propaga e evidencia-se durante a narrativa. Ou seja, Abdellatif Kechiche constrói uma obra de velho registo, o clássico “when boy meets girl” (neste caso “when girl meets girl“) que está mais que vendido para o grande ecrã, onde o autor segue para lá do happy ending e provoca assim os próprios cânones cinematográficos, aproximando-o cada vez mais do realismo que não se limita ao estético e interpretativo, mas sim às componentes emocionais.

É que em pouco menos de três horas de duração, o realizador consegue “pintar” um quadro trágico e cru, onde a câmara, que prefere os grandes planos, parece alimentar-se das emoções dos atores, originando uma invasão de intimidade entre o espectador e as personagens. Tal câmara responde a um testemunho que não procura o espectáculo, mas sim o decifrar dos códigos das afinidades afetuosas. Se o realizador é eficaz em tal demanda? Diríamos antes que Kechiche é perfeito no papel de “voyeurista emocional“, onde o seu modus operandis persistente, repetitivo e constantemente impertinente torna-o num implacável produtor ou irradiador de sentimentos, os quais parecem arrebatar todo o ecrã.

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Tudo isto não funcionaria na perfeição se “A Vida de Adèle” não fosse envergada por duas atrizes dispostas a ser submetidas a tal experiência “kechichiana”. São desempenhos poderosos, não no sentido mais estonteante de muitas das prestações oscarizadas de Hollywood, mas sim pela naturalidade que empregam. Apesar de Léa Seydoux ser a sedução em pessoa, é em Adèle Exarchopoulos que os elogios caem em força. A jovem atriz consegue não só esboçar uma personagem carnal, pontuada por um desenvolvimento quase digno do registo literário, mas também pela “penetração” na essência do filme. Com isto quero dizer que derivado à forma diretiva que Kechiche opera, o qual as suas obras são suportadas pelos seus atores que cedem a uma constante “tortura interpretativa”. Exarchopoulos responde ao desafio exposto com uma espontaneidade de “cortar o fôlego“.

“A Vida de Adèle” é um filme belo, não no sentido figurativo nem concretamente visual, mas sim na sua forma experiencial, incutindo e simulando na perfeição uma história que muito bem poderia ser vivida por qualquer um, independentemente das orientações sexuais, etnias, religião e classe social. Um dos grandes filmes do ano, onde as emoções continuam a ser o próprio espectáculo cinematográfico.