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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Quando o "pai é meu" vira filme emancipado!

Hugo Gomes, 22.04.25

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"Primeiro a Vida, Depois o Cinema". Francesca Comencini refuta os ensinamentos do pai, o cineasta Luigi Comencini, vigorando uma releitura da sua vida numa espécie de "Cinema Paraíso" dos privilegiados, e talvez seja assim que "Il Tempo Che Ci Vuole" se revela tão sonhador, fabulista e repleto de amor-próprio quanto atravessado por uma vaidade inerente às egotrips dessa autoficção. Uma juventude conturbada, de uma realizadora que, ao tentar desprender-se da sombra paterna, parece apenas alimentar-se desse mesmo vulto.

Há sempre um certo grau de miopia com que Francesca entra em cena enquanto Francesca. O pai (maravilhosamente representado por Fabrizio Gifuni) manifesta-se como maestro da arte popular, em contraste com a cineasta das vanguardas, da autognose transformada em dor cinematográfica. É um duelo sem sangue o que opõe estas duas gerações: o primeiro, alicerçado no mundo e no seu afecto pela humanidade; a segunda, ancorada numa visão mais ensimesmada do cinema. Luigi é mais ternurento para com a grande tela. Vê os filmes como janelas — escapes — uma fuga da realidade sombria e do tempo que, parafraseando Gaspar Noé, "destrói tudo". Já Francesca (Romana Maggiora Vergano, uma das atrizes em destaque no sucesso “C'è ancora domani”), ao falar de si própria e ao repescar as memórias como matéria fílmica, faz do cinema um divã, uma psicanálise, uma terapia. Um palco onde se fala de si como uma escritora que transforma a câmara na pena da sua criatividade.

"Il Tempo Che Ci Vuole" é mais precioso enquanto homenagem ao pai do que como retrato da realizadora. E daí, surgem questões em torno da sua própria seriedade e do intuito de coleccionar e bracejar por entre essas recordações. Onde estão as restantes irmãs — Paola, Eleonore e Cristina? E a mãe? Porquê a sua ausência? É mesmo necessário um filme para mostrar um pai a demonstrar orgulho pela filha. “Estás num bom caminho!”? Há, talvez, um certo sentimento de oportunismo nesta história e na maneira como é contada. Por que fazer desta biografia, escanzelada na reflexão dos seus medos, uma alegoria onde a baleia de Pinóquio — evocada recorrentemente — surge como medo materializado, como pseudo-epifania, longe de se comportar no confronto da pequenez humana que Béla Tarr incitou no seu "Werckmeister Harmonies"?

Será este filme verdadeiramente verdadeiro — no sentido das suas intenções — para que possamos acolher o seu gesto com credibilidade? "Il Tempo Che Ci Vuole" percorre o tempo, sim, mas com algumas e evidentes malhas.