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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Quando nada é sagrado …

Hugo Gomes, 20.10.16

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Para muitos a profanidade, mas que para Rodrigues o “pontapé de entrada” para este seu mundo de autodescoberta, e novamente Santo António, como o santo padroeiro do nosso realizador (recordamos a sua curta “A Manhã de Santo António”) e o signo de chagas da sua mortal existência. A história arranca com um ornitólogo, Fernando, um observador de pássaros interpretado por Paul Hamy (“Maryland”), que a meio da sua acidental jornada descobre uma estranha entidade que reside no seu íntimo, um “outro eu” apenas visualizado pelas aves que o agora o observam-no. Uma descida a um rio em busca das raras cegonhas negras levam-no a uma remota região onde espíritos enlouquecidos e um povo regido por folclores e tradições ancestrais convivem hostilmente.

João Pedro Rodrigues afasta-se, claramente, do modo tradicional da narrativa, ou pelo menos o do percetível mainstream, dirigindo este seu “O Ornitólogo” aos textos religiosos e aos passos deixados por Santo António, desde a sua pregação aos peixes até ao seus dons de ressurreição. É de um existencialismo narcisista, este tom prescrito nesta “peregrinação” florestal, mas este seu egocentrismo vale como bênção perante a exposição submetida do seu ser enquanto realizador e ainda mais como homem. É um filme de aventuras pouco convencional, como fora referido, um caminho que não nos leva a nenhum ponto geográfico específico, ao invés disso é o centro da alma e a fantasia sexualizada do nosso João Pedro Rodrigues o qual se concentra no destino. Este é o cinema de transformação pessoal, a metamorfose concretizada com uma sobriedade cinematográfica e ocupado por uma fotografia recorrente a um exotismo esotérico.

Sim, a esta altura, o leitor já percebeu que este “O Ornitólogo” é um filme pessoal, uma daquelas vinculadas “raças” que muito apologista do dito “cinema comercial português” (ou lá se isso existir) despreza. O “filme para amigos“, segundo estas vozes, porém, a verdade é que este produto de círculos fechados prevalece-nos como uma viagem (e tanta) a um fértil mundo de espiritualidades heréticas, onde a religião mais conservadora é apropriada pela libertinagem do ego, assim como a animalidade destas entidade marginais. Eis, novamente, o reencontro com a ligação umbilical entre Homem e Natureza que João Pedro Rodrigues parece cada vez mais tecer no seu cinema. Será cedo para dizer que estamos perante o seu melhor trabalho?