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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Quando a (nossa) vida tem o seu quê de performativo ...

Hugo Gomes, 20.05.25

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Desconfio de que o actor e revelado realizador Fabian Stumm tenha tido a intenção de polvilhar a sua primeira longa-metragem com uma crítica ácida, mas nunca expositiva, ao domínio da autoficção como bandeja criativa fundamental do século XXI. Assumo, como é claro, que o poder a meu alcance de inteiração com esta obra não sai do plano da igual autognose, até porque o subjetivo é crucial numa crítica de cinema, mas é nesses ossos de ofício que certos nomes são dados. Nem de propósito, "Bones and Names" coloca o realizador (e também protagonista) num conjunto de três histórias entrelaçadas, de nós feitos, que confirmam ainda mais essa tendenciosa engenhosidade que depois de James Joyce, perante o desencantamento de um mundo já sem mistérios por desvendar, beneficiou-se a introspecção — ao jogo do ‘eu’ — como recorrência e ocorrência criativa, e é daí que parte o novo material maleável para a produção de novas artes, movimentos e critérios.

Bendita seja. O filme alemão pouco se entrega a estéticas vigorosas ou a fidelidades taco-a-taco com as vanguardas. É, como se diz a certa altura, “nem Pagnol, nem Lubitsch, uma outra coisa”. Stumm dispõe desses três enredos: dois mais evidentes que o terceiro, com o propósito desse mesmo gesto de concepção. O primeiro, o de um “escritor-vampiro”, aproveitando-se de outras histórias viventes, como contaminação às suas ficções impressas. Por outro lado, o companheiro (interpretado pelo próprio Stumm), um actor numa rodagem intimista proveniente de uma realizadora francesa (Marie-Lou Sellem), cujo filme se revela baseado em factos verídicos, ou melhor, em episódios em que a cineasta deseja ver revividos, para poder julgá-los de longe, ou como um fetish sádico, tentar intervir no curso dessa inevitabilidade. A terceira história já não corresponde à criação, e sim à destruição: uma criança descobre o seu lado perverso, traquinas, se quisermos amenizar, para desafiar a Ordem em qualquer forma. O trio persiste numa demanda quasi-rohmeriana, de diálogos que conduzem a causas e consequências, onde o Verbo detém a sua imensidão e o seu gesto.

Curiosamente, ao colocar a autoficção no centro, não posso deixar de ver Stumm próximo dos provérbios e dilemas do agora bem consagrado norueguês Dag Johan Haugerud, da trilogia "Love" (2024), "Sex" (2024) e o Urso de Ouro "Dreams" (2025). A sua câmara, fixa, acompanha situações narradas que não apelam a consensos, nem à primeira pedra atirada, mas antes a um ouvinte do outro lado. Outro ponto curioso: a estaticidade brinca com o espectador, desde o wink wink de genitais no início, passando pelos ensaios, onde a presença da câmara, essa da ficção dentro da ficção, instala os primeiros movimentos. Quebra-se uma maldição, o verniz danifica-se, o argumento abocanha qualquer devaneio de forma, e a partir daí o filme vive em uma outra instância. Uma descoberta na nossa província de Zé Povinho.