Quando a crítica olha para a crítica
Damien Chazelle dirige Emma Stone em "La La Land" (2016)
Bergman dizia que o cinema lhe permitia comunicar com o mundo, literalmente de alma com alma. Quem está do lado da crítica sabe que é esse desejo que alimenta a pena. Mas pena é como quem diz… A crítica hoje tornou-se polivalente, pode ter relevância no Youtube como num direto de televisão ou de rede social. E democratizou-se, ficou de todos.
Já há muito que venho dizendo que esta ideia de partilhar o amor cinéfilo pode ser confundida como “críticos de bancada”, mas também é de bom senso não fazer disso um papão. O cinema de autor precisa de maior divulgação e é proibido proibir essa ideia de pluralidade. Sou dos que pensam que é saudável esgrimir opiniões na caixa de comentários de um post no Instagram ou no Twitter – os gostos discutem-se e a maneira do outro olhar para um filme pode ser uma porta para compreendermos melhor o nosso gosto. Tudo isto não invalida as escolas dos olhares, embora não faça do academismo militante uma bandeira. É óbvio que a crítica hoje continua a ter de saber olhar para um passado e história do cinema mas também é de novas ordens e correntes que se faz a dissecação dos olhares cinematográficos inovadores.
Quando vemos um filme há algo a decidir: como equilibrar o valor do sonho com a ordem do real. O cinema fantasiado, o cinema do real. É por aqui que os atuais códigos do cinema contemporâneo passam e torna-se natural que se cerrem fileiras. Nessa escolha de posições sou dos que voto pela incoerência, acredito piamente que cada caso é um caso. Um tipo de cinema não anula outro. O novíssimo cinema do real não tem que ferir mortalmente o cinema lúdico. Vem aí o novo Damien Chazelle, que, ao que parece, terá vénia de overdose a Fellini. Babylon não tem que ser inimigo do próximo Wang Bing ou deste assombroso “Tourment sur les Iles”, de Albert Serra… É nessa polivalência que o crítico, encartado ou não, tem de saber navegar, eventualmente ter o direito ao sentido de desorientação.
Jonás Trueba na rodagem de "La Virgen de Agosto" (2019)
Mas, afinal, o que acontece quando a crítica olha para a crítica? Talvez apenas sirva para reavaliarmos os nosso conceitos de vigilância perante as imagens e as suas políticas. Mas igualmente códigos e éticas. Porque se o cinema pode ser um atiçar artístico do imaginário da imitação da vida real, é bom perceber se ainda é legítimo perceber como em Portugal alguma da crítica perca o tesão pelo cinema de Hong Sang Soo ou como, de repente, David Pinheiro Vicente é levado ao colo. Independentemente de tudo isso, a crítica, sobretudo em festivais, consegue “fazer” cineastas. Aliás, talvez mais do que nunca, festivais e cineastas precisam da crítica, sobretudo de uma crítica que não faça clube de fãs mas que saiba encontrar pontos de ajuda para se refletir sobre um processo autoral de uma obra. Se em Portugal há elitismo em quem tem espaço para escrever ou ser voz de recomendação, creio que não é importante. O importante é reconhecer que há um auto-da-fé de muitos que estão presos (que encantatória prisão...) no labirinto do cinema. Um auto-da-fé que eu julgo ser puro e sem rodeios.
Acusam-me de não dar muitas cinco estrelas – nada contra a quem as dá, mas estou cada vez mais órfão do cinema de que me formou. Assayas não é o novo Truffaut, Cronenberg já não é o Cronenberg dos 80 ou dos 90 e Licorice Pizza está longe da genialidade de “Magnolia”, embora continue a ter esperança que Tarantino, Steven Spielberg e Nanni Moretti vão voltar a superar-se. É uma fé minha, só minha, se calhar. E tenho Julie Ducournau, Ari Aster ou Jonás Trueba para me contradizer...
*Texto da autoria de Rui Pedro Tendinha, jornalista e crítico do jornal Diário de Notícias e autor do site / blog / rúbrica Cinetendinha.