Primeira classe para o "Mars Express". Falando com Jérémie Périn: "Apostei na inteligência do espectador."
Ano 2200. Os humanos já não são exclusivos à Terra. Marte foi conquistada e terraformada, transformando-se numa colónia interespacial – o palco de uma investigação detetivesca que pode comprometer o futuro e a nossa relação com a maquinaria. “Mars Express” é mais do que uma curiosidade na animação ou um simples vislumbre futurista; é a exploração de um futuro possível, onde humanos e tecnologia de ponta se cruzam numa utopia – ou talvez, e melhor salientando, numa distopia.
Jérémie Périn sempre declarou o seu compromisso para com a animação, fazendo desse gesto o seu contributo cinematográfico: torná-la num veículo adulto, afastado do imediato político-social, brindando-nos com o cinema de género na sua forma mais autêntica.
“Mars Express” encontra-se atualmente disponível no catálogo da TVCine+. Partilhamos aqui a nossa conversa com o realizador, numa altura em que o projeto foi apresentado em solo português, com o cunho do festival Monstra.
Gostaria de começar com a génese deste projeto, mas antes gostaria de questionar, ou constatar que, o facto de este filme ser de animação torna-o uma alternativa, porque não seria possível fazê-lo em imagem real devido aos custos. Hoje em dia, para um projeto destes existir, é quase obrigatório estar associado a uma grande produção de Hollywood ou a uma plataforma de streaming.
Sim, tens razão, mas, antes de mais, a animação é a técnica que conheço no cinema. É a minha área, por isso continuo a usá-la e a aprimorá-la projeto após projeto.
Há também muitos aspetos específicos que introduzi neste filme e que talvez nem surgissem como ideia numa versão em imagem real. Por exemplo, o Carlos – o andróide – é um modelo antigo de robô e, para o seu sincronismo labial, utilizei uma técnica japonesa em que não há a formação exata das vogais na boca, apenas um ritmo de movimento: um blá blá blá blá contínuo. Já os outros personagens seguem uma sincronização labial mais realista e fluida.
Além disso, a separação entre humanos e máquinas foi reforçada através da técnica de animação: os robôs são feitos em CGI, enquanto os humanos são desenhados à mão. Usei estas diferenças para caracterizar melhor a natureza de cada personagem e estabelecer uma gramática visual distinta para cada tipo de ser.
Mas, ao mesmo tempo, tens razão: este filme seria impossível de fazer em imagem real em França – seria demasiado caro. A animação também é dispendiosa, até mais do que a média dos filmes franceses de imagem real, mas há uma vantagem. E isto pode parecer um exagero, mas se fizeres um filme de animação passado numa cozinha ou no espaço, os custos acabam por ser praticamente os mesmos. Por isso, mais vale fazê-lo no espaço!
A sincronização labial do Carlos ... então é por isso que a sua protagonista - Aline Ruby (Léa Drucker, “Jusqu'à la garde”) - detém expressões faciais tão demarcadas? Para compensar a tal limitação nos lábios do seu parceiro?
Sim, mas ele não é o único que tem expressões faciais muito específicas. Acho que a Aline também tem algumas bastante distintas, tal como o Simon (Sébastien Chassagne) e, em certos momentos, até a Roberta Williams (Marie Bouvet).
Isto foi algo que quis explorar na animação porque, na minha opinião, as expressões neste meio tendem a funcionar como emojis – raiva, alegria, tristeza – sempre de forma muito óbvia, sem grandes nuances entre estados emocionais. E queria tentar algo diferente, expressões que normalmente não se veem na animação. Penso que uma das razões para tal é o facto de, muitas vezes, essas expressões poderem parecer "feias", tal como acontece quando tiramos uma fotografia a alguém no momento errado, apanhando uma expressão estranha no meio de uma transição ou movimento facial.
Portanto, essa foi a ideia. Talvez a razão pela qual reparaste mais nisso no Carlos seja porque ele surge em muito mais situações do que as outras personagens.
Jérémie Périn
Sigo agora para a génese, como surgiu a ideia para este filme?
Surgiu simplesmente da vontade de fazer ficção científica. Com o Laurent Sarfati, que co-escreveu o argumento comigo, tentámos desenvolver um projeto de sci-fi muito antes de “Mars Express”, mas tivemos vários fracassos – um atrás do outro. A certa altura, trabalhámos numa série de televisão, cuja primeira temporada escrevemos com outros argumentistas. Sendo uma série, precisávamos de mais guionistas, mas dirigi essa primeira temporada: chamava-se “Lastman”, e foi um sucesso, e quando há um sucesso, vem sempre a pergunta dos produtores: "O que querem fazer a seguir?" A nossa resposta foi clara: "Ficção científica!!".
Mas não era apenas isso. A ficção científica abrange um espectro enorme de possibilidades, e tenho o hábito de me perguntar: "O que é que sinto falta como espectador? O que é que gostaria de ter visto e ainda não vi?" Na altura em que começámos a escrever, sentia falta de uma abordagem mais realista, mais próxima da hard science, algo onde a ficção científica não fosse mágica, nem fantasia, nem “Star Wars”, mas sim algo na linha de “2001: A Space Odyssey” ou “Minority Report” – um universo mais pragmático e tangível. Também olhámos para a atualidade, e na altura já havia toda essa conversa de Elon Musk e Jeff Bezos sobre abandonar a Terra e colonizar o espaço ou Marte, dependendo de qual bilionário estivesses a ouvir. Com a Laurent, quisemos comentar isso também e foi assim que tudo começou. Depois, claro, o processo de escrita foi-se tornando cada vez mais orgânico, e a história ganhou vida própria.
Antes de entrarmos na componente social do seu filme, queria falar sobre influências. Enquanto via “Mars Express”, constantemente recordava referências bastante variadas. Não sei se foram influências diretas para si, mas, por exemplo, Isaac Asimov veio-me logo à mente, como também “Ghost in the Shell” e até um pouco de “RoboCop” de Verhoeven.
Sim, claro! Todas essas referências foram, sem dúvida, muito importantes. Para mim, Asimov é uma influência incontornável, as suas ideias sobre robôs continuam a ser extremamente atuais. Por isso, em vez de reinventar tudo do zero, optámos por aproveitar o conhecimento que o público já tem sobre robótica através de Asimov para acelerar a narrativa. Por exemplo, quando mencionamos “directivas” no filme, o espectador compreende de imediato que nos estamos a referir às Leis da Robótica. Isso permite-nos evitar longas explicações e exposições desnecessárias, tornando assim a história mais dinâmica e acessível.
Até porque as personagens já vivem naquele futuro. Nós, enquanto espectadores, temos que nos adaptar ao mundo delas, e não o contrário.
Exatamente! Um dos meus maiores desafios foi evitar que tudo fosse explicado através do diálogo. Algo que me irrita bastante é quando os personagens vivem num determinado mundo, conhecem-se há anos e, ainda assim, explicam uns aos outros coisas que já sabem – apenas para que o público perceba. Fica artificial.
Apostei na inteligência do espectador. Quis que fosse atirado diretamente para aquele futuro e tivesse de se situar por si próprio, compreendendo as regras desse universo sem explicações forçadas. No fundo, queria que a audiência também se sentisse como um detetive, a tentar decifrar aquele mundo.
Achei interessante criar esse efeito duplo – um filme sobre uma investigação em que o público, de certa forma, também participa na descoberta. Julgo que me fiz entender, certo?
Ao mesmo tempo, por exemplo, no início do filme, a ação decorre na Terra e há um certo confronto que não é aprofundado, porque rapidamente nos mudamos para Marte. A partir desse momento, esquecemos a Terra, mas há um claro trabalho de worldbuilding em curso. Gostava de falar sobre as ideias que tem para esta tecnologia futurista.
Referiu o transumanismo, mencionou também Elon Musk, as viagens a Marte e a possibilidade de lá vivermos. E há uma cena específica que me chamou a atenção: hoje em dia, falamos pouco sobre o que acontece quando a nossa dependência das máquinas nos ultrapassa. No filme, há um momento em que os protagonistas tentam tratar uma ferida, mas a máquina que deveria ajudar deixa de funcionar – e o técnico, ou melhor, o médico, fica sem saber o que fazer.
Sim, porque há uma máquina que deveria tratar disso. Essa cena reflete o problema da concorrência entre humanos e robôs. É também por isso que, no início do filme, vemos uma manifestação na Terra, com trabalhadores a protestar contra os robôs e a odiá-los. Mas o filme sublinha que a culpa não é dos robôs. O verdadeiro problema são as pessoas que detêm essa tecnologia e que controlam a economia e o sistema, colocando humanos e máquinas em competição.
A minha posição sobre isto é semelhante ao debate atual em torno da inteligência artificial, como o ChatGPT ou o Midjourney. Acredito que estas ferramentas podem ser extremamente úteis, desde que não sejam usadas para substituir ou competir diretamente com o trabalho humano. Essa é a ideia central do filme e é também por isso que introduzimos o transumanismo e personagens ciborgues – as pessoas veem-se forçadas a aumentar as suas capacidades com melhorias cibernéticas para conseguirem competir com robôs totalmente automatizados.
A propósito disso, há experiências que usam IA para criar imagens e até para gerar animação. Vemos algumas no YouTube que são muito impressionantes, embora ainda estejam numa fase inicial. Recentemente, não sei se viu os vídeos gerados por IA onde há movimentos de câmara complexos numa cidade, com pessoas a andar nas ruas. Tudo é gerado artificialmente e parece live-action. Claro que ainda há falhas, pequenos glitches, mas a tecnologia está a evoluir rapidamente. O que acha do uso da IA desta forma?
Como disse, pode ser uma ferramenta interessante. Na verdade, até tenho algumas ideias sobre como a poderia usar na animação 2D para criar coisas impossíveis sem IA – ou que levariam décadas a produzir apenas com trabalho humano. Por exemplo, não me oporia a utilizá-la para animar multidões aleatórias. Se reparou no filme, há momentos em que a multidão no fundo está praticamente imóvel. Ninguém gosta de animar esse tipo de cena, e fazê-lo de forma tradicional é extremamente caro e a IA poderia ser uma solução útil para dar mais vida ao cenário sem comprometer o trabalho artístico principal.
Outra possibilidade que quero explorar é a geração de frames adicionais numa animação 2D. Normalmente, os filmes de animação são feitos a 24 frames por segundo, mas gostava de experimentar um filme a 60 FPS. Já foram feitos testes, por exemplo, com desenhos animados antigos como “Tom & Jerry”, e o resultado é uma fluidez extrema, muito diferente do que estamos habituados a ver. Pode parecer estranho ao público, mas acho que poderia funcionar para o meu próximo projeto.
Seria interessante brincar com essa alternância entre uma animação hiper-fluída e o ritmo tradicional de 24 FPS. Criar momentos de maior fluidez e depois regressar ao formato clássico poderia resultar numa experiência visual única. Mas, claro, isto ainda é algo experimental. É preciso mais pesquisa e desenvolvimento para perceber como integrar essa fluidez de forma natural dentro da linguagem da animação.
Achei curioso o que disse sobre animar multidões. Fez-me recordar de quando “Ghost in the Shell: Innocence", de Mamoru Oshii, foi lançado [2004], e que na altura discutiu-se a “trabalheira” que foi em animar uma cena com uma multidão enorme, e a sua decisão de animar cada pessoa individualmente. Foi um trabalho incrível para a época.
Eles tinham um grande orçamento para esse filme! [risos] Se tivesse um orçamento daqueles, talvez pudesse contratar animadores específicos só para isso, mas, por enquanto, tenho de encontrar soluções alternativas.
Além disso, é um trabalho extremamente cansativo.
Outra solução foi o que fizemos com os robôs no final do filme. A multidão de robôs está toda em movimento, mas, na realidade, é uma animação 3D repetida, usámos apenas 15 modelos diferentes, copiámo-los e alterámos as cores para criar diversidade. Como não estão todos perfeitamente sincronizados, o resultado final parece natural e funciona bem. Poderíamos aplicar a mesma técnica a multidões humanas. No entanto, se a animação gerativa por IA evoluir ao ponto de conseguir criar esse tipo de movimento, pode tornar o processo ainda mais rápido e eficiente do que modelar personagens 3D manualmente. Dito isto, não sou contra misturar diferentes técnicas, desde que a escolha faça sentido dentro da linguagem do filme.
Sobre a indústria da animação… Normalmente, a animação parece ser pensada e dirigida unicamente para o público infanto-juvenil. Mesmo hoje, continua a ser difícil vender animação para adultos apesar das atualizações. O seu filme tem um tom claramente mais adulto, portanto, questiono quão desafiante foi produzir algo assim?
Quero fazer animação, mas não para crianças. Atualmente, na França, isso tornou-se mais fácil. Não digo que seja simples, não é nenhum mar de rosas, mas é muito mais viável do que antigamente. Quando comecei a trabalhar na indústria da animação, simplesmente não havia essa possibilidade—até que “Persépolis” (Vincent Paronnaud e Marjane Satrapi, 2007) estreou. Conhece esse filme?
“Persepolis”? Sim, o que decorre no Irão…
Exatamente! Esse filme foi um verdadeiro ponto de viragem. Teve algum sucesso, e o sucesso ajuda sempre, mas, mais do que isso, trouxe a ideia de que a animação pode ser para adultos, desde que conte uma história séria—se for algo histórico, social ou político, por exemplo. Depois vieram filmes como “Waltz with Bashir", de Ari Folman …
Adoro esse filme!
Sim, também … e mais tarde surgiram “J'ai perdu mon corps” (Jérémy Clapin, 2019) e “Les Hirondelles de Kaboul” (Zabou Breitman e Eléa Gobbé-Mévellec, 2019), entre outros, alguns menos conhecidos. A maior parte destes filmes segue um estilo de comentário social, mais direto. Não sou contra esse tipo de animação, claro, porém, desejava expandir as possibilidades do meio, trazendo mais géneros. Porque não fazer ficção científica, sobrenatural ou outros tipos de filmes que gosto de ver em live-action, só que em animação?
O facto de ter feito a série “Lastman” e de ter sido um sucesso em França abriu portas para experimentar algo como “Mars Express”. Julgo que as mentalidades estão a mudar. Além disso, em França há uma cultura forte de anime e manga, o que faz com que as pessoas estejam mais abertas à ideia de que a animação pode ser direcionada a adolescentes e adultos.
Também os videojogos desempenham um papel fundamental nisso. Os mais novos estão habituados a empatizar com avatares e personagens estilizadas, não necessariamente realistas, talvez isso ajude, de forma inconsciente, a aceitar narrativas contadas com personagens desenhadas à mão ou em CGI.
Para terminar, a pergunta clássica: quais são os teus próximos projetos? Já tem algo em mente?
Sim, sim, já estou a pensar em algo, mas ainda não escrevi nada—apenas algumas notas no telemóvel… e garanto, está uma confusão! [risos] Ainda não defini uma estrutura clara, mas a ideia seria um thriller contemporâneo em Paris, com elementos sobrenaturais. Quero situá-lo nos dias de hoje porque fazer ficção científica no futuro implica desenhar tudo de raiz—e isso dá uma “trabalheira”! Desta vez, posso simplesmente sair à rua e pensar: “Esta rua seria perfeita para esta cena.” Posso esboçá-la logo ali, no momento.
Mas, claro, tudo pode mudar. Por vezes temos uma ideia de que gostamos, só que ninguém quer financiar, e aí, temos de repensar o projeto. Por isso, prefiro não entrar em demasiados detalhes… não vá dar azar!