Portugalidades em movimento
Um ambicioso projeto da produtora/estúdio 'Sardinha em Lata' que enriquece esse universo tão pouco falado entre nós, a nossa animação portuguesa. Deveríamos declará-lo como um género à parte, mas fiquemos com as proezas, neste caso com “Os Demónios do Meu Avô”, a nossa primeira longa-metragem em stop-motion, arte resolvida com muita persistência (e paciência), aqui entendida com muita 'portugalidade'.
Mas vamos por partes, após a 'propaganda' do seu estilo, o espectador poderá entrar desiludido por um início computadorizado, onde somos acolhidos pela protagonista, Rosa (Victoria Guerra), uma citadina workaholic e deveras solitária (sem admitir tal), que decide partir em direção às suas raízes após a notícia da morte do seu avô, que a criou, e que gradualmente se afastou, e um descambar da sua 'aparente' e sonhada vida. De volta à ruralidade, tenta vender a casa albergante das suas memórias de infância, sem antes a tentar reconstruir e solucionar o problema de água existente no Vale de Sarronco - uma maldição segundo a crença dos habitantes e vizinhos do falecido parente, um agouro trazido por demónios e outras criaturas nefastas. Na transição da animação digital para o stop-motion (como uma espécie de salto a duas dimensões opostas - urbana e rural), o barro em abundância acrescenta uma rugosidade rústica e austeridade que posicionam aquele meio proto-transmontano numa espécie de falso-faroeste com caretos e parentescos.
Digamos que é um estilo artesanal de inegável identidade portuguesa na sua alma, tradicionalmente guiado por essa identidade folclórica, cujas criaturas são abstrações dessas lendas oriundas de regiões remotas e do resquício pagão. De estética maneirista, aliando-se à sua sonoridade, desde o trabalho vocal dos atores até à banda sonora rompante composta pelo alarido folclórico dito transmontano, enraizado em gaitas-de-foles, bombos ou sanfonas (da autoria de Carlos Guerreiro e Manuel Riveiro, em colaboração com os Gaiteiros de Lisboa), que conectam a narrativa com a sua aura ancestral e fantástica, “Os Demónios do Meu Avô” é um mimo técnico (e não devendo limitá-lo a uma condescendência nacional) luso-fabulista para deleite do espectador. Já no seu argumento, a narrativa afasta-se da batida ternura imposta por uma Disney ou dos estúdios mainstream, aqui, a ambiguidade é o motor reconhecível, sem perdões epifânicos, de igual forma que nunca romantiza os habitantes rurais, retirando-os do estereótipo de 'humildade imperativa a seu estatuto precário', em voga desde regimes passados.
O grande senão da animação de Nuno Beato é a sua abstrata noção de tempo, difusa e empapada em um ritmo acelerado (também, convém afirmar os recursos da animação, dispendiosos aos diferentes níveis, humanos, monetários e produtivos). Nesse termo, “Nayola” de João Miguel Ribeiro joga em melhor posição.