Por favor, respeita-se a tempestade
O que está em causa não é considerar "Killers of the Flower Moon" como a obra-prima de Scorsese ou o suplício interminável da sua carreira. Nem sequer é encontrar nesta história desvendada de nativos americanos enriquecidos com a exploração petrolífera no seu território e, eventualmente, massacrados silenciosamente por uma gananciosa conspiração, cujo enredo motivará a criação do FBI, como um revanchismo histórico sociopolítico hoje levado da breca pelos … admirem-se … grandes estúdios hollywoodescos.
Enquanto discutimos os factos e a duração, ou caímos na superlatividade com palavras fáceis, esquecemos o “ativismo” scorseseano: o de resgatar a arte da ditadura do “conteúdo” e o cinema adulto enquanto resistência à infantilização industrial. Como o fazer? Obviamente, estabelecer pontos de contacto entre o que se perdeu e o que se adquiriu, ou seja, "vender a alma ao Diabo", mefistotelicamente falando da Apple TV (produtora de "Killers of the Flower Moon") como sustento, o cavalo de Tróia em troca de liberdade na criação. Hipocritamente, o "conteúdo" que tanto ele prega contra, mas aí existe uma traição, não à sua natureza, mas aos financiadores naturais, pois inegavelmente há Cinema aqui, longe do guião e da sua dominância que os “espectadores de conteúdos” (apelidamos desta maneira) premeiam ou das subserviências às pregações atualizadas. O Cinema é nos dado pela sugestão de uma força maior que a do seu filme, se isto não nos faz crentes deste estado, digamos que existem dois momentos que retive nesta jornada de três horas e meia que muita imprensa pornograficamente salienta nas suas letras gordas, e poderá se aproximar de “milagre” na escassez destes anos movimentados.
A primeira, apontamos na paragem, pausa como quiserem, Leonardo DiCaprio (aqui o protagonista scorseseano com mais fraco espírito) e Lily Gladstone se enamoram após uma ceia, restringidos na casa dela, a poucos quilómetros do epicentro do vilarejo. Uma tempestade aproxima-se, avisa ela, enquanto instrui à personagem de DiCaprio como manter em silêncio e imóvel na mesa de jantar. A desculpa é que tempestade é um sinal a respeitar - não se vá enraivecer aquilo que não se compreende - e da quietude espiritual acalenta até os mais furiosos temporais. O olhar meigo de Gladstone reflete esse estado de espírito, como um soneto relaxante à atribulada e inquieta presença de DiCaprio. O filme repousa com eles, por pouco tempo, obviamente, é lhe pedido para acalmar, e por ordem hierárquica ao espectador também.
Energético como Scorsese sempre demonstrara (em tempos recentes metia-se à cocado no “The Wolf of Wall Street”), o realizador parece chegar-nos domado. Erro nosso pressupor tal passividade, apenas procura o seu “canto do cisne”, a tristeza residida na última nota, essa de paz encontrada ou debilitada com “Silence” (dos seus filmes mais divisórios), ou da despedida de um estilo e quiçá de um universo em “The Irishman” (uma obra também pactuada por aqueles que tanto embate), deixando a porta entreaberta [literalmente] para uma morte anunciada (o epílogo como sinal divino do Scorsese dos últimos anos). A tempestade, o Scorsese “velho” porém estilizado e fora de horas, é exorcizada nestas recentes estâncias, possivelmente na busca de um derradeiro título, em “Killers of the Flower Moon”, se tudo correr bem não deterá esse papel, mas é o ritual de afirmação para com essas memórias que se contrapõe a um Scorsese “novo”, mais próximo para com o súbito desvanecer.
Melancólico, o realizador transforma esta cena, que muitos ignoram ou desleixam, na sua “dança da chuva”, um pedido alto a um Cinema que faça de casa / abrigo ao espectador, não apenas entretê-lo ou informá-lo (aqui encarando o Cinema como peça social), e sim de criar uma compaixão entre visualizado e o visualizador. A partir daqui, aquele subenredo de máfia disfarçada com Robert De Niro (contido, o qual solicita a DiCaprio o tratamento de Rei, ao invés do laço sanguíneo), é um “faz de conta”, um pretexto de continuidade às juras. Abalar o porto de abrigo ou seguir em frente na imperatividade da sua história (e História), soa-nos ao “velho Scorsese”, ou simplesmente a marca ferrada, dirigida a gado, para nos manter a par da sua “mão invisível”, enquanto que o verdadeiro filme, possivelmente o encontrado pelo mesmo, pousa naquele olhar, dócil, de Gladstone, correspondido ao jeito tonto de DiCaprio, prejudicial e igualmente protetor. É aquela ligação que fortalece “Killers of the Flower Moon”, é aquela febre que despoletará a lição a ser chicoteada, infiltrada no campo florido do crime(s) em retrato fotográfico … mas já lá vamos.
Segundo momento, a febre, Scorsese infernizado pelos seus pecados, ali, “torturando” Gladstone que vai esmorecendo na sua própria cama. O quarto iluminado à meia-luz, ambiente que se aproxima ao teor fúnebre, não é a única luminosidade que atinge a assoalhada, da janela um clarão impede a noite escurecer, uma queimada é feita a uma considerável distância dali, controlada por dezenas de homens cujas silhuetas transfiguram pelas labaredas e os corredores incendiários. Aquelas figuras humanas são reduzidas a sombras, e as sombras reduzidas a criaturas disformes, distorcidas na sua própria malícia. É uma imagem e tanto, encostando o suposto realismo (coerente no seu storytelling), à invocação espectral. Não são os mortos a manifestarem, nada disso, são os vivos a renegar a sua ligação para com o natural, enfraquecendo a sua essência até se tornarem meros espantalhos. É a visão dos Infernos, a de Dante segundo a perspetiva de Scorsese, dos homens brancos, cowboys no termo clássico, coreografados com a sua sinfonia macabra.
Destes dois momentos, com Gladstone no seu centro - cuja o seu underacting se revela numa discreta virtude que “abocanha” as intrigas à deriva que Scorsese vai polvilhando aqui e acolá - expressam a vontade do realizador comunicar, não com a fé religiosamente falada (uma das suas velhas verrugas cinematográficas), mas para além do que as imagens poderão oferecer. Pois bem, figurações num realizador terra-a-terra parece uma manobra brusca, contudo, e parafraseando Álvaro Cunhal no tão espontâneo “olhe que não, olhe não”, esse escape ao que somente as imagens dão, sempre o acompanhou, manifestando com ele um súbito do que existe para lá das ações e da carne. Desde forças imaginárias do seu “After Hours” (1985), a montagem onírica estampada em palcos broadwaianos [“New York, New York”, 1977], passando pela teologia óbvia e desconstrutora [“Last Temptation of Christ”, 1988] ou a morte ao pendurão [“Bringing Out the Dead”, 1999], e continuando e continuando. Scorsese nunca fora um artesão do óbvio.
Certamente que "Killers of the Flower Moon" será “venerado” ou “odiado” por outras razões, muitas delas que trazem à memória os maneirismos ou idiossincrasias do cinema scorseseano. É um facto, não neguemos que não é uma obra à imagem do seu criador, mesmo que a guinada faça por “vales da estranheza”. Em termos teóricos é mais um postal para o mapa histórico-territorial que Scorsese tem-se dedicado, aproximamo-nos da apoteose semi-apocalíptica de “Gangs of New York”, nem que seja a extração dos cenários lamacentos e sujos daquela “Big Apple” em construção, colocando lado-a-lado com este pseudo-western de iguais impurezas (uma vez mais, pouco ou nada furioso). Conquistando o Oeste ou perdê-lo na desgraça, a América de outras passagens que só os tempos que decorrem são capazes de desenterrar e converter no conto cinematográfico (estamos numa fase de desconstrução da nação, como se pode evidenciar nas produções correntes).
No entanto, voltemos ao casal, à relação-farpa nesta história de crimes finalizada em tom anti-climático, algo que poderia ser digno de um Robert Altman nos seus últimos trabalhos (a minha memória levou-me ao “A Prairie Home Companion”, por exemplo), pressupor à imaginação como o elemento que falta, não só ao cinema norte-americano obviamente, mas ao espectador cada vez escravo da ideologia do realismo porque sim. E é nesse relato a várias vozes que se pontua, em jeito de intertítulos informativos, o pós-”Killers of the Flower Moon”, mas é no casal, ou na réstia dele, que o filme se enfoca. Típico Scorsese, pode o mundo acabar, pode a civilização cair ou os deuses declararem o fim, mas é a relação, é o intimismo do contacto e da cumplicidade que tenta a todo o custo preservar. Grande escala que pare pequenas “coisas”, como “Taxi Driver”, por exemplo, com Travis Bickle prometendo o tumulto social, o Basta enraivecido, o atentado aquele candidato a mayor, mas no final, é aquela menina (Jodie Foster) que estabeleceu contacto e que a todo custo tem que a libertar do seu proxeneta. Em “Killers of the Flower Moon” é aquele casal improvável que importa, é o seu desígnio motivado pela mais “pequena das coisas”, a grandiloquência envolta soa-nos a … cenário.
Dou por mim a pensar que de Scorsese pouco ou nada percebemos (não o conseguimos resumir simplesmente), mas chamar “Killers of the Flower Moon” é um facto, e não há suplício nenhum que determine o contrário.