Pontas soltas…
Agathe Rouselle em Titane (Julia Ducournau, 2021)
Não sou pessoa de celebrações, viciado em efemérides, nem particularmente gosto de qualificar o quantificável. Em 2022, o Cinematograficamente Falando ... fez 15 anos e o C7nema chegou aos 20. Seja qual for a idade de qualquer um deles, e de muitos outros (parabéns a todos no ativo porque celebram uma idade qualquer), não é obviamente por aí que se prova mais ou menos amor pela escrita, pela crítica ou pelo Cinema, mas apenas e só que se reuniram as condições ótimas para se fazer algo que é um notório exercício de privilégio sobre uma arte que também ela foi construída por outros privilegiados.
Por isso mesmo, e durante estes anos todos que escrevo ou falo sobre cinema, a grande maioria deles sem qualquer tipo de remuneração, nunca senti que era maior ou menor que ninguém, a começar por todos aqueles que tinham plataformas que foram desaparecendo à mesma velocidade que outras chegavam.
Tive a sorte (privilégio!) de aos 10 anos me darem um Spectrum, com o qual programava mais que jogava. Ao mesmo tempo, tive a sorte (privilégio!) de ter uma mãe cinéfila, a qual religiosamente me levava ao cinema aos domingos, e uma tia que trabalhava nas salas da Lusomundo, e que me deixava entrar neles durante a semana. Já sem acompanhamento familiar, seguia religiosamente as Matinés da TV, a Lotação Esgotada e a Última Sessão. Seguiu-se o privilégio de ter um vídeo com 3 cabeças, gravando tudo o que via, e, claro, aceder aos videoclubes e uma excecional RTP2 que serviu de formação, não apenas pelos filmes que mostrava, mas das pessoas (críticos e não só) que falavam deles. Liceu, faculdade e outros cursos pelo meio, além de livros, revistas ( Se7e, Blitz e Expresso, fundamentalmente) e milhares e milhares de filmes. Em todas estas etapas, a minha casa transformou-se num cinema para os amigos e a minha mochila num videoclube ambulante. Paixão, amor, whatever, pois claro, mas muito privilégio.
Creio que só 10 anos depois de o C7nema estar no ativo conheci o Hugo (2012?), algures no São Jorge. Foi um ano de viragem, no qual os visionamentos, nas salas ou em casa, e as discussões a seguir a eles, tornaram-se cada vez mais energéticas, e sempre, nem que fosse um filme que nenhum gostasse (Olá “American Sniper"), em exercícios intensos (e estafantes) de discussão artística e política - de tal maneira que quem estava de fora pensava que íamos andar à pancada. Em termos de C7nema, isto não era propriamente uma novidade, pois já no período de 2002-2005 as discussões eram bem acesas e estafantes.
Mas ao longo de todos estes anos, onde inequivocamente existiu paixão, amor e até obsessão, o tal privilégio nunca nos abandonou. E além do estudo da imagem e das palavras, além da forçosa saída para outras fontes (artes, religião, política, sociedade, etc) para escrever sobre Cinema, a noção da presença desse privilégio tem de estar constantemente nos nossos olhos, cérebro e mãos quando escrevemos. Não é fácil, até porque como dizia Georges Duhamel, “nenhum de nós consegue pensar como quer pensar. Os nossos pensamentos foram substituídos por imagens em movimento”. E são essas imagens que nos conduzem (e contra as quais tanto lutamos como namoramos) para as transportar para o papel ou computador, sem medo de desagradar ou falhar.
Pauline Kael dizia que a primeira prerrogativa de qualquer artista, em qualquer meio, era o de fazer o papel de palerma. E nisso, o crítico, como criador de algo (um pensamento, uma ideia, etc, a partir de outra), além da noção de privilégio tem de ser implacável, mesmo que a honestidade (que se exige que tenha) seja vista como ridícula e lhe roube cliques, leitores ou likes. E nem um gracioso vai-te foder, uma chapada à entrada da sala de cinema, ou a expulsão de um visionamento, o pode condicionar, pois se ele existe apenas para agradar, servir ou servir-se do mercado, então renomeie-se o termo. É que se o cinema morreu e se hoje até já só falamos de “conteúdos” ( e não filmes), talvez o crítico de cinema tenha morrido juntamente, e afinal caminhamos todos sobre as suas ruínas como influencers.
*Texto da autoria de Jorge Pereira, fundador, editor, jornalista e crítico do C7nema