Perdidos em Marte
“A eleição de Bolsonaro foi o que de melhor aconteceu ao cinema brasileiro nos últimos anos”, ouvido numa tertúlia cinematográfica, daqueles serões embebidos em álcool, petiscos e noites prolongadas em conversas entrelaçadas em volta de filmes, factos e disputa de opiniões (a imperatividade de uma só ‘verdade’). Neste caso, a frase polémica é momentaneamente argumentada (não vá ela ser deslocada do seu próprio contexto) do seu automático peso com que “cai” entre o grupo.
Bolsonaro e as suas políticas de asfixia à produção audiovisual levaram a que este mesmo cinema, fora dos wannabes do mainstream (Globo produções, “gíria” brasileira), a assumir o seu caráter de denúncia. Contudo, este cinema não surgiu somente com o triunfo do bolsonarismo no decretado Poder, eles sempre haviam existido, só que é em Bolsonaro que se depararam (por fim!) com um materializado antagonista, um vilão com face e “tentáculos”, uma imagem pelo qual pudesse realmente rebelar, ou melhor, resistir (RESISTÊNCIA, como bem gritou, de punho erguido a produtora Sara Silveira em Berlim de 2019). Devido a esta luta contínua, entre cineastas e políticos desinteressados e apenas motivados pelas suas agendas, entre um Brasil humanamente desgostoso e uma plataforma determinada a atribuir voz a minorias, mudas e silenciadas por políticas intrínsecas. Agora, Bolsonaro tornou-se um fantasma, um país assombrado pelo seu vulto, o que restará do cinema brasileiro para além da sua guerrilha neste mandato Lula permanece uma incógnita.
Mas antes de ‘brincarmos’ às vidências, recuemos no tempo e “joguemos” de cabeça a um dos últimos filmes dessa vaga anti-Bolsonaro - “Marte Um” de Gabriel Martins - candidato brasileiro ao Óscar em 2022, uma escolha improvável até porque a obra comporta-se como um exercício passivo perante essas adversidades políticas-sociais (o realizador e argumentista trabalharia neste filme desde 2014, Bolsonaro seria a atualização durante do seu processo criativo). A sua introdução nos contextualiza ao pressuposto, Bolsonaro venceu e daí surge uma “nova era”, no seu seio, uma família (típica, apesar de tudo) persiste nas suas “ruelas”. Em “Marte Um”, a política é subjacente, a crítica é lançada para segundo plano, mais como um marco temporal, priorizando assim as inquietações de cada um dos membros da família-protagonista, negros de classe média baixa e com alguns “espinhos” cravados. A sua introdução, possivelmente os seus primeiros 10 minutos, deixam em antemão um percurso pelas mais variadas “causas” associadas aos movimentos de esquerda, só que passados esse “cumprimento”, Martins dissipa qualquer dependência às mesmas lides, o filme vinga (e não é pouco), por um ingrediente apenas, a sua extrema sensibilidade.
É em oposição ao Brasil da sua contemporaneidade que a sensibilidade sobressai neste episódio familiar, na procura de um espaço, não somente um lar, mas de uma epifania que possa salvar estas mesmas personagens da “prisão” que o país descortinou ser e que reflete nas adversidades das suas respectivas vidas. Não é por menos que todas as personagens procuraram refúgio na mudança, seja numa eventual estação espacial em Marte, numa carreira futebolística, numa evasão ao “lugar mais barato” ou de uma apartamento vazio, longe do Mundo, longe de tudo, onde os "náufragos" se entregam de corpo e alma ao desejo sem recriminação. Belíssima sequência essa, carnal e não só, prazerosa brincadeira com melânia e luzes (ou a ausência dela) convertendo corpos em iluminações naturais.
Digamos que “Marte Um” parte de uma “catástrofe” (poderemos discutir política, mas inegavelmente foram os 4 anos menos empáticos no Brasil dos últimos anos) para se instalar como um filme de comunidade, de abraços apertados e pedidos, de sonhos ainda requeridos. O Brasil pode sonhar, Marte está ao virar da esquina, metaforicamente falando. O recomeço é óbvio.