"Perdido por Cem" ou perdido por mil, António-Pedro Vasconcelos e a sua juventude inquieta
António-Pedro Vasconcelos nunca escondeu o seu fascínio pela Nouvelle Vague que "influenciava" as mais variadas frentes do cinema mundial. E em Portugal, pela alçada de António da Cunha Telles [produção] e por via do baptizado Cinema Novo, gerou-se uma ruptura temática e formal para com o “cinema do regime”. Uma mudança impulsionadora de filmes como “Os Verdes Anos” (Paulo Rocha, 1963) ou Belarmino (Fernando Lopes, 1964). Passados 10 anos desde o primeiro exemplo, o anterior crítico da revista Cinéfilo, que tem atestado o seu potencial em curtas documentais, lança-se num projeto ambicioso em trazer à luz a vaga francesa com tradução lusitana. O resultado foi “Perdido por Cem”, que partilha com a incontornável obra de Rocha, a juventude parida sem futuro que migra da ruralidade para a metrópole possível, Lisboa. Aqui, Artur (José Cunha), à boleia do fala-barato e maneirista Rui (José Nuno Martins), procura por uma cidade soturna e de uma burguesia decadente, um espaço para as suas ambições desfraldadas.
Vasconcelos anunciou com esta obra um percurso assumido em atribuir novo cinema ao cinema português, descalcificando o seu romantismo cinematográfico mas nunca abandonando o romantismo pelo cinema. É inegável não encontrar em “Perdido por Cem” um retrato contínuo dos “verdes anos” impedidos pela repreensão social e o atraso socioeconómico que o nosso país atravessava, porém, este “Pierrot Le Fou” alternativo é demasiado preso ao seu registo de mimetização, opções que desaceleram a narrativa (ao contrário dos citados de Jean-Luc Godard que cometiam uma velocidade-TGV) e a colocam diversas vezes numa deriva pouco confortável. A escolha e persuasão pelo som direto por parte de Vasconcelos (segundo o próprio, só em França conseguiu tal feito) agrava ainda mais a incompreensão dos diálogos e por sua vez do destino destas personagens sem eira, nem beira, destinadas a rodopiar num signo à “La Jetée” (as imagens “congeladas” da obra de Chris Marker em certa maneira são invocadas naquele final voluntariamente apático).
“Perdido por Cem”, recentemente resgatado para o clube dos restaurados (graças ao trabalho meticuloso da Academia de Cinema em colaboração com a Cinemateca Portuguesa), é um reencontro com um passado datado, mitigado e explosivamente reservado que “pintaram” a capital portuguesa com um desencanto pelas suas “criaturas noturnas" (a cidade que nunca dorme mas que também nunca acorda) ou pelas aspirações resguardadas pelos “brandos costumes”. Mesmo assim, ao contrário de outros contemporâneos seus (o mais adocicado “O Cerco”, de realização do próprio Cunha Telles soa-nos mais fluido na sua linguagem), a imposição de movimento já definido, tardiamente importado, auferem efeito de cópia de segunda mão.
É uma sensação que nos impede, infelizmente, de reter-nos aquela apropriação da emblemática sequência de “Le Feu Follet” (Louis Malle, 1963), que ao invés da ressaca sufocante conspirada pelo mundo envolto é o impasse de quem não confia em previsões futuras, “limitando-se” a viver o agora com todos os golpes a que tem direito (e aqui, o na altura “não-ator” José Cunha torna-se na mais potente arma de Vasconcelos, e de alguma maneira o seu alter-ego). Ou que dizer da abertura sem cortes, de cabelo ao vento e de diálogos metralhados pela auto-estrada em direção ao incerto. Como a grande fatia dos filmes que se cola, “Perdidos por Cem” é mais interessante por partes do que no seu corpo total.