Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Perdido ao "KM 224" ...

Hugo Gomes, 20.04.22

km-224.jpg

Ana Varela em "KM 224"

Em todas as vezes que António-Pedro Vasconcelos é convidado a discursar, tertuliar ou meramente expressar, paro e ouço com agrado, mesmo que parte daquilo que será eventualmente dito seja posteriormente contestado. Atualmente, mais que nunca, esse lugar cativo é constantemente reservado, até porque APV (carinhosamente abreviado) é um sobrevivente de um tempo que nos é cada vez mais distante. Contudo, existe uma diferença no homem cronista, cinéfilo e com vontade de “queimar as bases” de sensos-comuns cinematográficos (“‘Oito e Meio’ de Fellini marcou o início do fim do cinema de autor europeu, porque foi a primeira vez que um autor colocou o seu nome no título”, uma das suas teses), e no homem por detrás da câmara, e é sobre esse último que vos trago.  

Popularmente conhecido entre o grande público (um dos poucos que responde às “massas" com alguma “dignidade”), APV é um devoto do cinema com que nasceu e cresceu (Hollywood, Neorrealismo Italiano ou Nouvelle Vague), e nisso reflete nas suas intenções ao invés dos seus atos. Por entre ensaios mais felizes que outros (sou dos poucos que defende “Call Girl” como uma subestimada vénia à série B americana), é com “KM 224”, uma espécie de “Kramer vs Kramer” à portuguesa, que notamos esse estrangulamento de referências com uma vontade de agradar “fregueses”. É um cinema que fala e apela aos sentimentos comuns, o qual faz uso das peripécias de um irresponsável pai (José Fidalgo), uma apropriadamente do muito padronizado arquétipo “child-man” [“homem-criança”], em contraste com a assertividade de uma mãe fria (Ana Varela), como o centro do conflito de um litigioso casos de custódia. 

km-2241165c9a0defaultlarge_1024.jpeg

José Fidalgo e as crianças [Gonçalo Menino e Sebastião Matias] em "KM 224"

Bebendo do modelo americanizado no tratamento destas personagens, mas nunca restringindo a drama de tribunal, em alternativa assume-se como uma dramédia com sede zeitgeist (APV sempre demonstrou essa ‘tentação’ de ser atual, custe que custar), “KM 224” perde o registo da possibilidade do seu cinema, ou por outras palavras não invoca o suficiente para que aquelas imagens mereçam o privilégio do grande ecrã (em oposição, os drones já se normalizam em demasia no audiovisual que as telenovelas utilizando-as exaustivamente). Com excepção do plano-zenit ao som de Leonard Cohen e o seu “Dance Me to the End of Love”, uma sequência que imprime os sentimentos daquelas personagens e do seu condutor fio narrativo como se a intriga não tivesse essa capacidade de expressão, ou um ou outro travelling, o restante resume-se a uma pobreza técnica, agravado por personagens pouco apetecíveis na sua construção e desenvolvimento (até pouco interessadas nesse aspeto), e uma guarda - essa suposta guerra infernal - que automaticamente escolhe a sua trincheira.

Por um lado é isto: “façam apenas o que eu digo, e não o que faço”. Apesar de tudo, continuarei a ouvir António-Pedro Vasconcelos. Por vezes tal acontece, vermos realizadores mais interessantes que os seus filmes.