Perdidamente, diz o Poeta…
“Martin Eden” é, para todos os efeitos, um filme de coração-artista: tumultuoso e inquietante numa sufocante ânsia em criar a todo o custo. É assim a personagem (figura refém do desempenho anárquico e igualmente magistral de Luca Marinelli), é assim a obra que busca livremente os sopros do homónimo trabalho literário de Jack London (de cariz autobiográfico) para proclamarem como seus numa Itália abstrata e enevoada quanto à perceção de século XX.
Antes de continuar nesta jornada de almas em construção, permitam-me salientar que Pietro Marcello não é um estranho nestas andanças cinematográficas, tendo seguido do documentário até o contaminar por inteiro (uma ressalva ao já estado híbrido de “Bella e Perdutta”). A sua chegada a “Martin Eden” não é de todo um total abraço para com a ficção, sendo que a veia documental, nem que seja pelo gesto em vasculhar o arquivo, resolve-se num dispositivo criativo que esboça paralelamente uma modernidade irreconhecível. Não conseguimos identificar a época, a reconstituição histórica, nem mesmo as figuras cimeiras do século, tudo é remexido e, equiparado ao desejo profundo deste Martin Eden, Marcello cria algo que possa rasurar e partilhar para meio mundo.
Porém, existe uma tradição a respeitar, e essa citação costumeira resulta na sua compaixão formal, um lirismo a ter em conta (assim como um vénia ao longo registo de cinema à italiana, mas já lá vamos). Como aqui também parece provar, as inspirações nascem do mar, até porque é desse biótopo que conhecemos pela primeira vez Martin, marinheiro com a “quarta classe” que se desperta para a literatura e “consequentemente” à ambição de ser escritor (contra tudo, contra todos e até contra ele mesmo) servindo da paixoneta para com Elena (Jessica Cressy), filha de uma família de classe alta e assumidamente liberal, como pretexto. Talvez seja a minha memória fresca, mas é do “grande azul” de onde surgem as vontades de domar palavras e fazer uso destas, pensando em feições e contornos femininos.
Por pouco não era “A Cidade Branca” / “Dans la ville blanche” (Alain Tanner, 1983), com o marujo Bruno Ganz perdido nos abraços de uma “sereia” (que não era nada mais, nada menos do que a empregada da pensão interpretada por Teresa Madruga). Só que ao invés da Lisboa, é Nápoles a servir aqui de cidade-chave, cujas memórias que aqui residem constantemente assombram o nosso protagonista, e só o retrocesso ao mar será a sua (des)merecida salvação (mas antes, há que experienciar uma praia tão felliniana, que por momentos imaginamos Marcello Rubini [de “La Dolce Vita”] a caminhar sob essas mesmas areias, e eis aqui uma das prometidas vénias ao cinema italiano enquanto legado a respeitar – essa casa de artistas e de mentes iluminadas).
Marcello faz uso da “loucura” de Martin para se espelhar, reproduzindo vontades, devaneios e imbatíveis persistências, políticas amorfas como fervuras à sua metamorfose – o homem inadaptado na direção do artista venerado. Portanto, é essa alienação que o fará separar do marinheiro afortunado de bom coração, dando lugar ao vulto intelectualizado em parte faustiano, em parte mártir ao seu criado bovarismo. Eis um filme em ascensão que mais soa a queda que nos faz acreditar, por momentos, num cinema italiano vigoroso.