Percorrendo um mapa emocional de Hirokazu Koreeda
Após 20 anos de carreira no Japão, passando de documentarista televisivo a um dos mais respeitados cineastas nipónicos da atualidade, e depois de cumprir com distinção máxima o Festival de Cannes (Palma de Ouro com “Shoplifters”, em 2018), Hirokazu Koreeda utiliza essa experiência como pretexto de embarque em novas geografias. Aqui (França), um realizador estrangeiro perante um elenco de luxo como este facilmente seria “engolido” pelas diferentes manivelas desta indústria ou dos egos profundos dos seus “novos” atores. Koreeda, tão diluído na cultura-mãe, vê-se obrigado a adaptar-se a um novo ambiente, concretizando com este “ La Vérité” (“A Verdade”) o que aparentemente seria o seu filme mais anónimo, numa ode à resistência autoral.
Face ao egocentrismo de Catherine Deneuve num perpétuo jogo de reflexos (existe na sua personagem, não uma autobiografia, mas uma perceção da sua personificação cinematográfica), o nipónico taticamente opera num registo de engodos lançados à ficção. Desengane-se quem pensar que o realizador encontra-se absorvido nos ambientes de glamour da indústria francesa e das suas respetivas lendas vivas, até porque essas características são peões numa tremenda partida à moda de Koreeda. Poderemos percorrer o seu território em dois pontos.
O primeiro, sendo o mais evidente – a família como vetor de toda a trama. Aqui, Juliette Binoche interpreta uma filha que a passos tenta reencontrar-se com a sua mãe (Deneuve), não através da distância física que se encontra exposta nos caminhos paralelos que ambas seguiram (ela vivendo nos EUA, enquanto a progenitora continuava celebrizada como atriz na França), mas pelos afetos negados, negligenciados e sobretudo desencontrados. “ La Vérité” usufruiu dessa aproximação como cadência própria da sua espessura dramática, esta melosa e sorrateira como é habitual no cinema de Koreeda.
O segundo ponto, este mais “tricky”, remete-nos à memória ilustrada que a obra do realizador sempre nos pontuou. Quem se lembra da urgência de registar fotograficamente uma separação em “Like Father, Like Son” (2013)? Ou, ainda mais longínquo, o paraíso hipotético de “After Life” (1998), onde as almas recém-falecidas têm de optar por uma das suas queridas recordações como um eterno loop de “existência” (estas, curiosamente, não seriam autênticas, mas encenações de uma equipa de anjos-cineastas). Pois, é através desse trabalho, ainda inédito em Portugal, que deparamos com os propósitos da persuasão de Koreeda na criação da memória através da imagem replicada. O dispositivo requerido é a rodagem de um filme dentro de um filme e a extração emocional de uma invocação memorialista. É o dedo do cineasta, com cumplicidade de uma Deneuve pronta para desarmar-se das suas “armas de resistência”.
Na “A Verdade” (mata-se aqui dois coelhos duma cajadada só) são esses os dois pontos que nos fazem, enquanto espectadores, aproximar do filme em si, demonstrando que o cinema de Koreeda está mais universal que nunca.