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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Pela estrada fora ...

Hugo Gomes, 11.08.20

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“Quando nasces. Quando morres. Quem sabe? Não, eu não sei qual é o propósito desta pedra, mas ela deve ter um, porque se esta pedra não tem propósito, então tudo é inútil. Até as estrelas! Pelo menos, acho que sim. E tu também. Tu também tens um propósito.” - O Louco

A Estrada” [“La Strada”] do título não é mais do que um percurso entre duas trágicas figuras que se complementam através do comum das suas inocências. É mais do que uma alusão à vida, como se esta fosse um trilho predestinado, por vezes curto, ou longo, incansável ou movimentado. E é sob esse veio que o destino dos dois farrapos errantes se unem, os de Gelsomina (Giulietta Masina) e Zampanò (Anthony Quinn). Não por amor, mas pela visão que cada um tem dessa mesma... estrada.

Antes de voltarmos ao caminho de malas prontas e de mente determinada em seguir este desconhecido horizonte, devemos contextualizar o seguinte: o realizador Federico Fellini participou de forma ativa na definição e estabilização do movimento neorrealista italiano (a estética da realidade de um ponto de vista ideológico), encorajando-o enquanto argumentista (por exemplo, foi um dos colaboradores de "Roma città aperta"). Com “A Estrada”, Fellini comunicou diretamente com esse jeito de estar e pensar em relação aos seus personagens, criando com isto um filme em constante mudança, e igualmente fiel aos propósitos da estética concebida pelo Neorrealismo.

Esta é uma obra de rua, de marginalizados e de detalhes sociais que pontuam a austera vida do sul italiano (o tal maneirista e suadamente festivo sul), em contraste com o norte comedido e “privilegiado” (que perdura até hoje, mais de 65 anos após a estreia do filme). Mesmo assim, “A Estrada” é também um importante manifesto de uma das marcas de Fellini na sua demanda cinematográfica: a farsa. Seja a encoberta pelos trajes circenses (melhor cenário de ilusões não poderia haver), seja a de tom irónico (aliás, cruelmente irónico) perante os seus peões, obrigados a viver nos parâmetros de uma fábula recontada.

Fellini sonhava com a distância do Neorrealismo que ajudou a criar, mas de pavio curto. Deparou-se com encruzilhadas e desfechos diferentes que o levaram ao encontro de um novo tipo de autor. Foi assim que nasceu o termo "felliniano", que remete para a mentira prolongada e dos contornos bestializados das personagens que encenam num tremendo palco. "A Estrada”, o possível Fellini consensual, é a emotiva e triste moral resolvida nas areias da praia (a praia comumente representado como o fim do drama "felliniano", aqui e nos filmes seguintes).

Contrariando o nosso senso, e inspirado no discurso esfarrapado do Louco (a personagem de Richard Basehart que servirá sacrifício para o anti clímax), há um propósito destas inutilidades, destes vagabundos relacionados pelos seus próprios miserabilismos. "A Estrada" é uma viagem de apenas ida, complementada com a emblemática sonoridade de Nino Rota (o compositor predileto de Fellini), também ele participante desta peregrinação a nenhures. E por fim, os iluminados e tristes olhos de Giuletta Masina, que hipnotizam e nos fazem rever a compaixão destes “inúteis”...