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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Pedro Fidalgo une-se a Dominique Grange para demonstrar que a Luta, musicalmente, faz-se na rua.

Hugo Gomes, 16.05.22

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Em 2014, Pedro Fidalgo, em conjunto com Nelson Guerreiro, lança “Mudar de Vida”, aquela que é, possivelmente, a maior homenagem no Cinema ao cantautor José Mário Branco (ou “Branquinho” para os amigos), um dos grandes impulsionadores da música portuguesa do século XX (e não só!), diversas vezes despachado como “cantor de intervenção”. Porém, o caráter político é transversal às artes, se a música apela às vontades e à resistência, o cinema, como sempre fora nos diferentes períodos da sua existência, converte-se numa ferramenta política. 

Desta feita, não é de José Mário Branco que revisitamos nem falamos, partimos para outras jornadas, mesmo que convergentes, um convite para conhecermos (ou reencontrarmos) Dominique Grange assumida artista de intervenção, de vida dedicada às causas em território francês que vão desde Maio de 68 até às diversas manifestações durante a “dinastia” de Macron. Pedro Fidalgo com o seu “N'Effacez Pas Nos Traces! Dominique Grange, une Chanteuse Engagée” (“Não Apaguem os Nossos Rastos! Dominique Grange, Uma Cantora de Protesto”) propõe não só um descortinar da artista musical, e sim uma viagem através da luta política segundo a sua ótica. 

O realizador falou com o Cinematograficamente Falando … sobre a mulher, a resistente, a rua e o nosso panorama atual, para relembrar-nos que o Cinema alberga um mundo e o Cinema é em toda a sua forma uma arte política. 

Como conheceu Dominique Grange? Como decidiu torná-la no objeto-estudo para o seu filme?

Foi durante a ocupação da universidade de Paris 8 em Saint-Denis em 2007 que pude ver o filme Le Ghetto Experimental de Jean-Michel Carré (1973) e que ouvi pela primeira vez uma canção de Dominique Grange como banda-sonora. Contactei-a numa tarde através do Facebook, fomos beber um café e assim começou a aventura deste filme. Foi também o facto de ela ser pouco conhecida, de que quando procuramos canções sobre o Maio de 68, apenas encontramos músicas compostas postumamente, mas são raras as escritas, compostas ou gravadas durante o movimento mesmo, que me interessei por dar a conhecer o trabalho dela.

Com este retrato de Dominique Grange em conjunto com o seu anterior “Mudar de Vida” em redor de José Mário Branco, gostaria de lhe questionar o que é para si um cantautor de intervenção, e o que une e separa de Grange do José Branquinho (José Mário Branco, queria dizer?) por exemplo?

Não gosto do termo de “cantor de intervenção”, porque o termo foi uma etiqueta que serviu para marginalizar os cantores do período dos anos 70 e seguinte, uma forma redutora para quem compunha ou escrevia canções com carácter social e político. 

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Le Ghetto Experimental (Jean-Michel Carré e Adam Schmedes,1973)

O José Mário Branco foi a pessoa que mais revolucionou a música portuguesa nos últimos 50 anos, a intervenção dele foi muito além do conteúdo político das letras, não só foi um grande poeta, mas desenvolveu também uma concepção sonora nova, adicionando instrumentos que até 1971 nunca tinham sido usados em Portugal, para não falar da sonoplastia e arranjos técnicos fabricados em estúdio, que não existiam antes. Também foi ele que trouxe o contrabaixo para o Fado, chamando várias vezes o Carlos Bica para gravar. Já o José Afonso, na forma e na estética, revolucionou mais que aquilo a que o sempre reduzem, a “cantor de intervenção”. Os menos atentos à sua obra deviam dar-se tempo para ouvirem a obra integral de José Afonso. Se ouvirmos toda a obra, reparamos que muito poucas são as letras de canções abertamente políticas, penso por exemplo, em dois temas monstros como Cantiga de Embalar ou Cantigas do Maio. Não há músicos e “músicos de intervenção”, porque todo e qualquer músico intervém desde o momento em que grava ou sobe para cima de um palco. 

O termo correto, para canções de crítica social e política seria, no meu entender, “canção de protesto”. As canções que pelo seu carácter por vezes panfletário chegam a ter uma utilidade específica de incentivo à exaltação colectiva ou à consciencialização, podem mesmo combinar notas musicais para que esse efeito de querer erguer se sinta. Note-se as semelhanças que há nas combinações de notas usadas em Les Nouveaux Partisans de Dominique Grange (1972) ou Eh! Companheiro de José Mário Branco (também gravada em 1972...), e na cadência própria da música que exalta e se pode encontrar por vezes em outras canções de apelo à consciência coletiva, que vai da Internacional (1871), à Varsovienne (1893) conhecida mais tarde pela versão dos anarquistas espanhóis  com o título A las barricadas (1936). Se por vezes se despreza a canção de protesto como se se tratasse apenas de propaganda, também há que relevar que muita canção de protesto em outros tempos chegou a cair no domínio público ou acabou recuperada como hino oficial dum ou outro regime político, penso nomeadamente à Marselhesa (1795) em França, ou A Portuguesa (1890) que foi usada durante a 1° República, e também durante o Estado Novo, perdurando até hoje como hino nacional. Se fosse realmente necessário um tema, penso que o tema Grândola, Vila Morena seria, para além de mais bonito, melhor adequado aos dias de hoje.

Numa das canções de Dominique é possível ouvir “Temos tempo para ir para a prisão. Temos 20 anos”. Existe um prazo de expiração para o ativismo político? A relação dos jovens com esta atividade advém sobretudo de uma expressão emocional?

O que essa canção diz é que devemos levar as nossas ideias a cabo, mesmo se pela prisão se tiver de passar. Abusar da despreocupação, desse bem-bom que é próprio à juventude, e não ter medo. Aos 20 anos podemos arriscar, porque temos uma vida pela frente. É preciso ver que o movimento desencadeado durante o mês de Maio de 1968 contou maioritariamente com a presença de jovens, grande parte sendo da geração baby-boom do pós-guerra. Penso que as condições da França em 1968 eram, mais que uma expressão emocional, um movimento de contracultura forte face a um De Gaullismo escleroso. Foi a maior greve que houve na Europa até agora com 10 milhões de trabalhadores a ocuparem os locais de trabalho. Houve uma juventude que se ergueu contra uma sociedade com a qual não se revia. Isso reproduz-se de geração em geração, pelo mundo fora. Se as pessoas quiserem mesmo, o curso da história pode mudar sempre que quiserem. É preciso querer.

Repesco a questão do prazo de validade para lhe questionar se hoje em dia, com a massificação das redes sociais, faz algum sentido a existência do cantautor de intervenção? Em Portugal sobretudo.

Não vejo o que é que as redes sociais possam interferir. No mínimo podem mesmo ajudar a veicular ideias ou dar a conhecer artistas pouco conhecidos. A música de protesto foi durante muitos anos banida das rádios. As redes sociais só vieram favorecer a democratização da comunicação, permitindo a novos artistas de aparecer. O canto de protesto ou a canção consciente existe e sempre existirá em todas as épocas. Como cantava Adriano Correia de Oliveira, “Há sempre alguém que resiste / Há sempre alguém que diz não”. Sejam cantigas de escárnio e maldizer de goliardos medievais, ou canções de protesto do século XX, a questão é sempre adotada nos diversos géneros musicais e variadas correntes artísticas. 

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Hoje em Portugal há muita canção de protesto, simplesmente não é catalogada dessa forma, seja na cultura hip-hop, no punk, no metal, ou até mesmo no néo-fado. Relembro que foi através de uma captação de um concerto dos Deolinda filmado por telemóvel e partilhada nas redes sociais que o tema "Parva que sou” chegou aos ouvidos do público mesmo antes do disco sair, e serviu para a mobilização daquilo a que se chamou o movimento do 12 de Março, contra a precariedade e as políticas de austeridade do governo corrupto de José Sócrates e, em seguida, nas várias mobilizações contra as políticas de Passos Coelho, os chamados anos da Troika

Isto para concluir que temos muita diversidade de letras e temáticas com carácter político progressista ou revolucionário e enquanto houverem dominantes e dominados, ricos e pobres, discriminações de qualquer tipo, haverão sempre canções de protesto à esquerda, e digo de esquerda, porque a direita e a extrema-direita também as têm, relembro agora a canção homofóbica de Quim Barreiros - Casamento Gay - um verdadeiro manifesto panfletário contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, no entanto os cantores pimba nunca foi chamados “cantores de intervenção”, muito menos banidos das rádios.  

Dominique Grange revela em muitas suas letras uma revolta desencadeada pela desilusão política, nomeando sobretudo a incapacidade da ala esquerda em responder às necessidades sociais dos habitantes. Tendo em conta o panorama atual sociopolítico francês, a ascensão da extrema-direita advém dessa desilusão política? Acrescento ainda a questão do Movimento dos Coletes Amarelos ter sido diversas vezes associado à extrema-direita?

O fenómeno da subida da extrema-direita é inerente a vários países, não apenas a França. O fantasma que representa a extrema-direita é usado em França há 20 anos como estratégia para que se mantenham e perpetuem políticas neoliberais através do voto útil. Claro que, quando as políticas se tornam cada vez mais antissociais, em que as pessoas se sentem inseguras com a precariedade à perna, e ao mesmo tempo sem grande perspectivas, sem projeto político próprio, o voto é de protesto e, por vezes mesmo, contrário aos interesses de classe. Uma das realidades que justifica essa mesma subida em força dos partidos nacionalistas, identitários, conservadores e xenófobos, em zonas que ontem eram “dominadas” pelo Partido Comunista Francês, tem a ver com a desindustrialização de zonas operárias hoje desertas, a deslocalização das empresas e a subida do desemprego, a dificuldade ... Os Coletes Amarelos foram um movimento nascido em zonas periféricas rurais e metropolitanas, rapidamente figuras próximas da extrema-direita apareceram a falar na televisão em nome do movimento sem terem algum contacto real com o movimento. Mais uma vez serviu de propaganda liberal para apontar do dedo os coletes amarelos de xenófobos, antissemitas, homofóbicos, etc... 

Quando grande parte do movimento contou logo com o apoio do Comité Adama encabeçado por Assa Traoré, alguns partidos de extrema-esquerda e muitos anarquistas. O movimento, escapando ao controlo dos partidos e sindicatos, deixou perplexos estes últimos incapazes de o compreender, pois fugia aos códigos tradicionais dos militantes ferrenhos. Dediquei três curtas metragens a esse movimento, um modesto olhar sobre a repressão que se abateu sobre os Coletes Amarelos. Podem consultar aqui.

A luta de classes é obsoleta?  

Não percebo porque seria obsoleto o confronto de classes, quando o número de pessoas vivendo em condição de proletária ou sub-proletária, que só pode contar com a sua força de trabalho, nunca foi tão elevado pelo mundo fora. Mas aí já vamos para outro campo que não é o do cinema. Nos dias de hoje, estamos habituados a filmes que falam de minorias pobres e intercepção. No filme “N’effacez pas nos traces !” prefiro abordar as linhas pela transversalidade das lutas, mais que pela interseccionalidade. Para além das metrópoles liberais onde o capital se concentra, hoje vivemos num mundo globalizado em que o operariado mais explorado e com menos proteção não se encontra forçosamente a trabalhar nas fábricas e empresas europeias, está em todo o lado, na China, em Bangladesh, no Nepal, na Índia ou em minas, como no Chile. São milhões e milhões de pessoas, essas que fabricam os tênis de marcas para multinacionais de acionistas, brinquedos, pescam no mar alto, constroem casas e prédios, ruas e cidades, calceteiros, fabricam luzes e colunas de som, telemóveis e computadores, carros, aviões e barcos, câmaras de vigilância, caixas de supermercado, aviários e matadouros, armamento... 

E cada vez mais sem contrato e separadamente, em mais de metade do mundo sem segurança social alguma, por vezes passando recibos-verdes, por vezes à candonga. Há países que nem para comprar pão um salário diário chega, não esquecendo que aqui no burgo, fora das grandes metrópoles onde o capital se concentra, as pessoas quase sempre passam das contas ficando impacientemente à espera do final do mês, temendo uma nova crise económica ou sanitária que possam dificultar as coisas ainda mais. Mas a realidade é que

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Segundo o filme, as questões ambientais e animalistas entraram no discurso do protesto de rua, como vê esta inserção, que é ainda hoje mal vista pela população rural e a população mais velha?

Segundo o filme, Dominique Grange entrou no protesto animalista a par da luta de classes, mas esse protesto já existia na rua há bastante tempo, só que deixado de lado e muitas vezes nas mãos do campo político oposto. Trata-se de uma dominação como qualquer outra, a do ser humano sobre a natureza e os outros animais. Como diz Brigitte Gothière no filme: quanto mais especialistas formos, mais racistas, mais sexistas, também. O mecanismo para justificar uma dominação em prólogo de outra, é clássico, daí a incompreensão e o desprezo de muitos ativistas da luta de classes para com o anti-especismo. Sobre a população mais velha e rural, depende. Primeiro a Dominique não é propriamente uma jovem e segundo porque na ruralidade também têm existido lutas que colocaram essas questões, nomeadamente nas ZAD, onde por vezes há confrontos entre os partidários da cultura vegetal e agricultores que usam animais.

Sobre novos projetos, manterá neste registo e “universo”?

Tenho aí uns projetos, ainda que embrionários, alguns num registo completamente diferente, até mesmo de ficção. Apenas um, embora o universo seja diferente, pode ser considerado no mesmo registo, ou através do mesmo tema, a canção. Gostava de fazer um filme sobre um poeta e compositor de canções de revolta comunista que acaba por ter de as usar contra o próprio regime em que acredita e defende. Ainda que esteja apenas numa fase de pesquisa, a história que gostaria de poder contar, é a de Wolf Biermann, comunista de origem judaica que se torna alvo direto do regime da RDA, fica proibido de cantar e gravar, vigiado dia e noite pela polícia secreta, até acabar por ser expulso do país e acabar exilado em Paris. Isto seria noutro universo, talvez mais sombrio...