Pediu-se que não se atirasse ao pianista...
Tal como a investigação que segue o mote da narrativa, a obra é feita de trilhos e entrelaçados, referências atrás de pistas, dando brindes a ruelas sem saída; é um filme de várias 'piscadelas', aromatizadas na cadência de “Chega de Saudade” (canção precursora interpretada por Jobim e escrita pelo poeta Vinicius de Moraes) e enriquecida com depoimentos de peso (Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento e João Donato), uma espécie de “Rossio pela Betesga a dentro”, ou melhor, a tentativa de enfiar o “Cristo Redentor no Beco das Cancelas”. Novamente unindo esforços com Javier Mariscal, Fernando Trueba revisita a animação e a música aí conjugadas (recordando “Chico & Rita”, em 2010, no calor do bolero), lançando-se na sua versão “Searching for the Sugar Man”, a demanda por um artista perdido - Francisco Tenório Júnior - pianista talentoso de samba-jazz brasileiro, colaborador do movimento/género bossa-nova, o macguffin que misteriosamente desapareceu em Buenos Aires [18 de Março de 1976], após sair do seu hotel na esperança de uma sanduíche, conforme está descrito no meu recado; acredita-se que a regime ditatorial argentina o tenha apanhado, e a tragédia é, como se sabe, iminente.
Portanto, Trueba e Mariscal ancoram-se no seu protagonista detetivesco, Jeff Harris, jornalista musical nova-iorquino aventurado nesta encruzilhada pela música exótica, caído de paraquedas nesta particular história do talentoso pianista misterioso. Aqui, damos de ‘caras’ com a primeira piscadela: a voz de Harris está a cargo do ator e entusiasta do jazz Jeff Goldblum, que fora, por mais duas vezes, jornalista musical, seja em “Between the Lines” (Joan Micklin Silver, 1977), e posteriormente no spin-off não oficializado dessa personagem excêntrica em “The Big Chill” (Lawrence Kasdan, 1983). Entendendo tratar-se de um prolongamento dessa mesma personagem, obviamente mais madura, com nuances trazidas de Kasdan, mas mantendo o seu ativismo e iniciativa.
Depois, evidentemente, surge-nos o título - “They Shot the Piano Player” - que não foge ao espectro de um dos filmes mais subvalorizados, e, porém, mais influentes na carreira de François Truffaut - “Tirez sur le pianiste” (“Shoot the Piano Player”, 1960) - com o pianista Charles Aznavour envolvido em embrulhadas que lhe podem custar a vida, numa obra de improvisos e experimentações que tentou redefinir o tom de uma vaga cinematográfica que tão bem conhecemos, e que, devido ao fracasso financeiro, obrigou Truffaut a reger-se a filmes mais narrativamente clássicos, deixando a subversão da fórmula para os seus camaradas do igual eixo artístico. Esta referência não é somente um júbilo, é uma ponte invisível e contextual, que interliga o Brasil com a França, de um lado a música poética e melosa dessa comunidade artística, e do outro, o cinema Nouvelle Vague, de Godard a Truffaut, sublinhando este último e a sua trilogia romântica (“Les Quatre Cents Coups”, “‘Pianiste” e “Jules and Jim”) como inspirações, modelos ou apenas atmosferas importadas. Eram tempos de descobertas, revisões ou resgates criativos, tempos de “mãos à obra”, de florescimentos e fluidez entre artes, um Renascimento desconstrutivo, agressivo e, sobretudo, ditado nas suas classes.
“They Shot the Piano Player” pode muito bem ser um documentário ficcional (apenas desapontado pelo seu grafismo pobre) sobre música brasileira com dedos apontados a uma só personalidade e, consequentemente, trazendo na canção um subtexto político, mas é no embalo dessas melodias que nos chega, com saudade é verdade, um memorando para com esses tempos. De resto, pensamos nós, o que aconteceu? Simples, “abateram o pianista”.