Paul Harrill: "a espiritualidade que mais me atrai é aquela que está enraizada na simplicidade."
Paul Harrill / Foto.: Fundação Luso-Americana
Paul Harrill já se encontrava há alguns dias em Lisboa, ministrara uma masterclass sobre “cinema regional” e apresentara uma sessão de um dos seus filmes na breve retrospectiva do festival “Outsiders”. Tínhamos combinado esta breve entrevista, e foi no Cinema São Jorge, ao abrigo da chuva, que nos introduzimos por iniciativa própria “Prazer, Hugo” … “Paul”, seguido por um aperto de mão. Enquanto aguardávamos pelo responsável do evento, na esperança de nos ser atribuído… quem sabe, um espaço mais “sossegado”, que pudéssemos conversar … deu-se um breve chat de tempo (e que temporal!).
Percorremos verbalmente pela precariedade do cinema. De um lado, Paul referiu que, não fossem as aulas que leciona, não conseguiria viver apenas do seu cinema e a partir daí, mergulhamos numa discussão hipotética: de qual seria o mais resiliente dos cinemas, o independente americano ou o português? O nosso venceu de “forma magnífica” o debate, mas é em relação à cinematografia portuguesa que o realizador americano se acende no que conhece — Pedro Costa. A conversa se alongaria mais, até que, por fim, alguém, aliás “o ‘alguém’ que aguardávamos”, se aproxima de nós, acena e aponta para o piso de cima. Decidimos então levar este diálogo para a cafeteria-bar do São Jorge.
“Não achas que está muito barulho aqui?”, pergunta Paul, algo alarmado. “Garanto-te que já fiz entrevistas em sítios bem mais barulhentos. Este não é, certamente, o primeiro nem será o último. Mas confio no meu gravador.” Instalámo-nos na mesa mais afastada do balcão e da esplanada — inactiva pela precipitação — e carrego no play do captador de voz. Arranca assim a breve conversa com e sobre Paul Harrill, os seus filmes, o seu cinema regional e, mais do que isso, o cinema adulto!
Queria começar pela masterclass. Não te vou pedir um resumo completo, mas gostava que falasses um pouco sobre o que foi a assunto nela, as tuas intenções com ela. E já agora, que também me desses uma definição de cinema regional. O que é, para ti, o verdadeiro “cinema regional”?
Na forma mais simples possível, diria que o “cinema regional" são filmes feitos por realizadores que vivem fora de Nova Iorque e Los Angeles, e em que a história é moldada por um forte sentido de lugar. E os realizadores, por viverem nesses locais, têm uma relação íntima com o sítio, e isso influencia diretamente a forma como contam a história, portanto, é uma espécie de cinema “de fora”.
Nos Estados Unidos, este tipo de cinema é muitas vezes difícil de produzir, por várias razões, e uma delas é que os realizadores, por não estarem ligados diretamente à indústria, têm mais obstáculos. Esta seria uma definição curta, e é disso que falei na masterclass — desse percurso no cinema americano, referir alguns nomes importantes e falar sobre os desafios que enfrentamos ao tentar fazer filmes fora do sistema, especialmente fora o domínio nova-iorquino e L.A. No fim, partilho também algumas notas e reflexões pessoais sobre trabalhar desta maneira.
Queria pegar que havias afirmado numa noutra entrevista — o Carlos [Nogueira, programador da Outsiders] mencionou isso na tua biografia. Disseste que fazes cinema “para adultos”, mas que não recorres a elementos normalmente associados a esse rótulo, como a violência, o sexo ou a nudez. Queria voltar a essa ideia: o que é, para ti, cinema verdadeiramente adulto?
Bem, acho que isso começou com uma entrevista que me fizeram — penso que foi o C. Mason Wells, numa conversa para a Film Comment. Acho que foi ele que disse que eu fazia filmes para adultos. Não sei se alguma vez disse isso assim, diretamente, mas entendo o que ele quis dizer.
Aquilo que tento é fazer filmes para pessoas que procuram uma experiência emocional, mas que também sejam levadas a pensar sobre o objeto-fílmico depois de o verem. Isso até pode parecer uma ideia simples, mas hoje em dia talvez já não seja assim tão comum, acima de tudo, pretendo que o espectador pense na sua própria vida depois do visionamento, em relação à história que acabou de acompanhar. Talvez até tenha uma experiência mais contemplativa … sei que essa palavra assusta algumas pessoas [risos] … mas é exatamente isso que procuro. E, não apenas sobre pensamento e reflexão, mas preciso que as pessoas tenham uma reação emocional ao que veem.
Quanto à ideia de “ser para adultos”, não acho que tenha necessariamente a ver com a idade, talvez sim, com um certo espírito que nos remete para uma geração anterior de cinema. Nos Estados Unidos, as obras da década de 70 — tu sabes, aqueles que abordavam temas mais maduros — sempre me marcaram muito. Tal como muitos filmes internacionais também me inspiram nessa jornada de “cinema adulto”.
"Something, Anything" (2014)
Faço esta pergunta porque tenho uma certa fascinação e, ao mesmo tempo, alguma preocupação com o chamado “público adulto”. O que é, afinal, o “público adulto”? Há uns meses, estive a ler um artigo na “The Economist”...
No “The Economist”?
Sim. O artigo dizia que a nossa geração — os novos adultos — são, no fundo, muito infantis, porque estão e sempre estiveram “contaminados” por vários elementos que os impediram de “crescer” emocionalmente. E um desses elementos, segundo o artigo, é a dominância da cultura pop. Dizem que estas pessoas já não conseguem ver um filme “adulto” — no sentido em que tu falavas há pouco — porque simplesmente não se ligam a esse tipo de histórias, necessitam de outros estímulos e escapismos. A nostalgia é um desses factores que os aprisiona, por exemplo. Fico muito curioso: o que é, hoje em dia, o tal público adulto?
Essa é mesmo uma boa pergunta! Tenho alguma hesitação em fazer generalizações sobre diferentes faixas etárias: sobre se estão mais ou menos desenvolvidas, ou não. Não acho justo fazer generalizações sobre uma geração inteira, apenas que é possível que as gerações mais novas tenham tido, por vários motivos, menos experiências “adultas”. Algumas dessas razões são culturais. Outras têm a ver, por exemplo, com o facto de terem chegado à idade adulta durante a pandemia, ou com questões económicas — como não conseguirem comprar uma casa, ou até pagar uma renda, e por isso viverem mais tempo em casa dos pais.
Há vários factores que moldam isto, e não acho justo culpar os jovens por não terem alcançado certos “marcos” daquilo que tradicionalmente se entende como vida adulta. Falo por mim: quando era miúdo, adorava os filmes do “Star Wars”, mas, com o tempo, à medida que comecei a fazer cinema e a ver mais filmes, comecei a interessar-me por outros tipos de histórias. É quase como aquela frase da Bíblia, em que São Paulo diz: “Quando era criança, falava como criança, mas depois deixei as coisas de criança.” Fui perdendo o interesse pelo “Star Wars”, embora continue a ter um carinho especial pelos primeiros filmes — porque foram eles que me despertaram o entusiasmo pelo cinema. Cresci com eles.
O que sei é que as histórias que conto provavelmente já são, à partida, para um público mais pequeno.
Queria agora ir aos teus dois filmes, mas com mais foco no “Something, Anything” (2014), porque a questão económica é um elemento muito importante no percurso da Peggy (Ashley Shelton).
Sim, claramente …
Ela embarca numa jornada existencial à procura de respostas - o filme não as dá, o que é uma coisa boa - mas a primeira decisão que toma é deixar de depender do factor económico. Ou seja, escolhe por trabalhar numa biblioteca. Queria começar por aí porque, apesar de não ser uma experiência “radical”, é uma decisão muito classe média e acho que um dos temas de que o cinema adulto deveria abordar é, precisamente, sobre as classes sociais.
Concordo!
Podemos considerar os teus dois filmes como políticos, de certa forma?
Sim e devemos. O “Something, Anything” é, nesse sentido, mais explícito do que o “Light from Light”, mas penso que os dois abordam temas políticos.
No caso das questões económicas em “Something, Anything”, vemos essa transformação da Peggy — que passa a chamar-se Margaret — e que entende que, para viver de forma ética, tem de mudar a sua forma de viver, economicamente falando. Há uma ligação clara entre dinheiro e ética, e isso é, sem dúvida, um tema muito adulto. Quando começas a trabalhar, tens ideais... e esses acabam por ser postos à prova, ou comprometidos, ou então nem tens mais ideais e acabas por despertar para eles quase de forma epifânica. Acho que é mais isso que acontece com a Peggy: ela percebe que, para seguir a jornada espiritual em que se encontra, tem de simplificar a vida — a nível económico — e proteger-se de certos compromissos que o capitalismo, sobretudo, nos pressiona a aceitar.
Sim, respondeste — e levantaste ainda mais curiosidade [risos]. Porque usaste a palavra capitalismo ligada ao espiritual … aquilo que nos chega da América é precisamente essa ideia de que o capitalismo e a espiritualidade estão, de certa forma, “casados”. Claro que não é só nos Estados Unidos, mas a América é quase sempre o ponto de partida dessas tendências que depois se espalham pelo mundo e o que vemos é que a jornada espiritual acaba muitas vezes por ser comprometida por lógicas capitalistas — com esses coaches motivacionais, cursos espirituais pagos, até religiões que entram nesse jogo político-capitalista.
Sim… mas confesso que tenho alguma hesitação em falar sobre esse tema, porque sinto que é algo que preferi explorar através dos filmes. Consigo expressar essas ideias melhor em cinema do que em palavras, porque o que sinto em relação a isso é demasiado complexo para uma frase feita ou uma posição clara. E sim, são temas muito presentes nos filmes. O que posso dizer é que, pessoalmente, a espiritualidade que mais me atrai é aquela que está enraizada na simplicidade.
"Something, Anything" (2014)
E quando falaste há pouco em cinema internacional, gosto mesmo dessa expressão. Prefiro dizer “cinema” do que “filmes”, sabes? E mesmo no “Something, Anything”, quando entramos naquele espaço religioso - o mosteiro - Senti algo ali... pode ser coisa minha, mas pareceu-me que havia uma espiritualidade muito próxima dos filmes do Robert Bresson.
Sim, é impossível falar de cinema espiritual sem, a certa altura, falar do Bresson [risos]. Ele é um mestre e é um dos meus realizadores preferidos de sempre. Mas, nesse mesmo espírito, diria também que adoro o trabalho do Carl Dreyer e do Roberto Rossellini. Há muitos cineastas internacionais que, não querendo comparar-me a eles, me inspiram.
Não é aquela inspiração direta, como, por exemplo, o Paul Schrader que vai buscar referências ao “Pickpocket” vezes sem conta nos seus filmes, mas é uma inspiração no sentido de que são realizadores que viam o cinema como um espaço para explorar estas questões e foi ao descobrir esses autores, quando comecei a fazer filmes, que senti que também podia explorar esses caminhos.
Falando em Schrader, já leste o livro …
Sim, o “Transcendental Style”…
Exatamente. Bresson, Dreyer e Ozu …
Adoro o Ozu também. É incrível.
Agora queria mudar um pouco de espírito e falar sobre o “Light from Light” (2019).
Quero começar com uma piada que te contei antes desta conversa — alguém recomendou-me o filme dizendo que era uma história de fantasmas.
Fui vê-lo e… era algo completamente diferente do que estava à espera, mas, para mim, acabou por ser uma experiência — adoro quando um filme trai as minhas expectativas e me leva para um outro caminho. Por isso pergunto-te diretamente: como surgiu a ideia para o “Light from Light" e a utilização desses elementos sobrenaturais? Porque, ao mesmo tempo, é um filme muito seco, diria até, muito terreno.
Terreno … gosto dessa expressão! Olha, para mim, a inspiração para um filme nunca vem de um único lugar. Vem de vários sítios. Já usei esta metáfora antes: é como um pássaro a construir o ninho. Vai juntando raminhos de vários lados e isso acaba por formar a ideia.
No meu caso, estava a passar por um período de luto e perda pessoal e, nessa altura, ouvi uma entrevista na rádio. Numa estação AM daquelas de baixa frequência nos EUA. Aquelas em que só se ouve talk radio ou coisas muito locais, quase universitárias ou amadoras…
Uma “rádio pirata”?
Não tanto, era oficial, mas com um alcance muito limitado.
Então uma rádio regional.
Exatamente! Rádio regional, é isso mesmo. Vês não só o cinema que tem direito de ser regional. [risos]
Estava a conduzir numa autoestrada numa zona rural da Virgínia e, durante uns cinco minutos em que apanhei sinal, ouvi uma mulher a falar sobre o seu trabalho como investigadora paranormal. Fiquei mesmo intrigado com aquilo. Gostei da ideia de fazer um filme muito… como é que disseste?
Terreno?
Sim! Muito terreno. Ou melhor, muito enraizado na realidade. Mas gosto da tua palavra também.
Então pensei: “E se contássemos uma história muito assente na realidade, mas com personagens que estão a lidar com algo que pode ou não ser um fenómeno sobrenatural?” Sem partir do princípio que os fantasmas existem ou não existem. Simplesmente explorar as personagens através dessa possibilidade. E, na verdade, muitas das nossas perguntas sobre fantasmas podem funcionar como metáforas para perguntas mais profundas, espirituais. E isso me interessava bastante.
Outra surpresa no filme, foi a maneira como apresentas a investigadora paranormal (interpretada por Marin Ireland). Completamente diferente do retrato habitual do arquétipo preferido pelos grandes estúdios. Vou fazer uma comparação tola… mas por exemplo, para com os filmes do “The Conjuring”.
[Risos] Sim…
Light from Light (2019)
Porque nesses filmes, a investigadora paranormal é toda ela certezas. Ela pode não ter as respostas, mas acredita que elas existem. Em “Light from Light”, a tua personagem investiga, mas está sempre a duvidar — até de si própria. Ela duvida, mesmo quando faz perguntas, e isso liga com o “Something, Anything”, porque nenhum deles possui uma resposta definitiva de algo que seja, nem da própria crença dos protagonistas. Tu colocas os temas no terreno do espectador.
Exactamente. Isso liga-se muito bem com a ideia de cinema adulto — um cinema que levanta questões e confia no espectador para encontrar as suas próprias respostas. Claro que também tenho as minhas ideias e opiniões sobre estes temas, mas não quero impô-las.
Há uma certa arrogância nisso, e evito a todo o custo. Prefiro confiar que o público se vai encontrar a meio caminho com o filme.
E gostei da tua comparação com o “Conjuring”, porque gosto desse franchise, mas queria contar uma história diferente. Aliás, um amigo meu, também realizador e fã de filmes de terror, leu o argumento do “Light from Light" e ligou-me furioso. Disse-me: “Tu desperdiçaste todas as oportunidades para fazer disto um filme de terror!” E eu respondi: “Ótimo. Era mesmo isso que realmente queria.”
[Risos] Isto está a tornar-se uma ótima conversa, mas estão a acenar-me ali do lado porque tens outra entrevista à espera. Mas quando estavas a falar, lembrei-me de uma frase famosa do Bresson, julgo que já a ouviste ou leste-a: “Primeiro, sente-se um filme. Depois, compreende-se.”
Sim… adoro essa citação. É mesmo isso.
Bem, até uma próxima talvez …
Absolutamente, gostaria de continuar esta conversa numa outra ocasião …