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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Patriarcas à deriva e outras criaturas alpinas

Hugo Gomes, 17.04.25

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Sobre “Vermiglio”, a questão não reside no seu formalismo de falso “filme de montanha”, ambientado nos últimos suspiros da segunda guerra, nem nas extensas ramificações familiares, inscritas numa espécie de “casa da pradaria” em versão italo-alpina. O que sinto — e talvez seja esse o ponto que mais me afastou daquilo que poderia ser o caminho de Maura Delpero ao trazer à luz a sua rica sensibilidade fílmica numa terceira longa-metragem — prende-se, sobretudo, com a forma algo tangencial com que aborda o sistema patriarcal. O patriarcado, longe dos discursos simplistas, posiciona não nos homens como cúmplices directos, mas antes como vítimas cooptadas — sujeitos igualmente capturados por uma lógica que os instrumentaliza, consome e, por vezes, transfigura em figuras monstruosas, moldadas pelos ideais hegemónicos de masculinidade normativa.

Mas vamos por partes. É um facto: a palavra “patriarcado” afasta, desde logo, muitos espectadores das encostas dos respectivos filmes, muitas vezes por estar associado a obras marcadas por um discurso inflamado ou por uma urgência de mudar o mundo com um estalar de dedos. “Vermiglio” não se inscreve nessas revoltas, ou, antes disso, há nele um certo carinho pelos homens, esses, patriarcas professorais, ‘vítimas’ da sua própria precariedade (entra-se classe social nestas montanhas austeras), mas cuja resposta às adversidades desperta esse lado maturado do sistema com que nasceram, sejam elas provindas do ambiente, do foro emocional, ou provocadas por jovens objetores da sua própria vida, ao invés do sacrifício bélico, como também aquele que falha em ser “homem” perante a constante exigência e aprovação do pai.

A polivalente feminista Virginie Despentes [de escritora a cineasta] no seu publicado manifesto, “A Teoria de King Kong” ("King Kong Théorie"), num daqueles parágrafos que esperneia até contra o já chamado senso-comum do feminismo capitalista (o promovida pelas ‘celebridades’ ou por ‘ativistas de redes sociais’), defende que, neste sistema ultra-patriarcal, a vida das mulheres não lhes pertence, pois são concebidas como propriedade estrutural desse mesmo sistema. No entanto, Despentes observa que, para os homens, a ‘sorte’ não lhes abona totalmente, os seus corpos pertencem “à produção, em tempo de paz, e ao Estado, em tempo de guerra".

Dito isto, e recusando a dicotomia simplista do “homem enquanto inimigo comum”, há a proposta de que também este é vítima dessa trituração. “Vermiglio” sugere esse olhar compassivo sobre o universo masculino desta comunidade, impregnados pelo dever de um patriarcado intrínseco. Nascem e crescem sob o conceito de “ser homem”, e assim se tornam. Nesse discurso resulta no melhor da obra, atribuindo-lhe uma visão ampla para mais do que uma mera denúncia por via de um contexto histórico. O seu ponto fraco, no entanto, emerge da negligência em desenvolver os subenredos masculinos, que, embora sugeridos, não chegam a consolidar-se como elementos narrativos autónomos, focando-se apenas no trio de mulheres jovens: a inocente, a pecaminosa e a talentosa. 

São decisões — e o cinema, na sua arte, vivem dessas decisões — que deixam antever um quadro cinematográfico composto, em que o frio — físico e emocional — actua como fissura dramaticamente simbólica. É um cinema do “não-dito”, que encontra na ausência, na contenção e na sugestão a sua forma privilegiada de expressão.