Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Pathos Ethos Logos: o Cinema Português quis uma Capela Sistina ...

Hugo Gomes, 12.04.22

3-1920x1080.jpg

Pode-se viver com o absurdo no coração, mas mais tarde ou mais cedo o coração deixa de viver.

Após as quase 11 horas de duração, isolei-me e refleti sobre o propósito a ter em conta na existência de um filme. Na minha mente recorri às etiquetas básicas alicerçadas a esse “sentido”; narrativa, estética, mensagem ou simplesmente experimentalidade, apontei num bloco como pistas para decifrar este enigma que acabei de testemunhar. Desta forma, codifiquei esta trilogia megalómana, idealizada desde 2014, com a palavra-chave residida numa categoria ausente da minha inicial lista - sensibilidade - fazendo ecoar numa das minhas citações prediletas de Jacques Rancière (“O cinema é a arte do sensível”). 

“Pathos”, “Ethos” e “Logos”, da dupla Joaquim Pinto e Nuno Leonel, ostenta-se como um ensaio dessa mesma sensibilidade (nem que seja a sensibilidade para a sua economia de tempo), porém, é uma sensibilidade hermética, apenas focado numa só, na deles, não havendo intenção de partilhá-la com o espectador, pavoneando esse espaço de criação e remontagem como recompensa nesta viagem pelas respetivas “flores da pele”. Futuro distópico pós-apocalíptico com os seus ares tarkovskianos alternativos, é bem verdade que a sucessão de imagens e de ditos e feitos aqui reunidos seja sinal da liberdade criativa e artística dada aos seus autores, apesar dos obstáculos que ambos trespassaram para o conceber, mas até que ponto essa liberdade não descortinou também um ego centrado e magnetizado? Ego foi “sintoma” que Pinto não escondeu no anterior “E Agora? Lembra-me” (vencedor do Prémio Especial de Júri do Festival de Locarno), a sua luta, aliás resistência, à Hepatite C, motivo que bastou para construir um filme pessoal em jeito diarista que o próprio é incapaz de responder se tal registo integrar algures o campo da “ficção” ou o território do “real”. 

Não se espera, porém, igual entusiasmo nesta nova demanda (espiritual, religiosa, ou lá o que seja), a meta das 11 horas são desafiantes (e chegam mesmo a ser repulsivos) nos seus estratégicos pontos de comercialização, distribuição, exibição e de publicitação. Nesta última, espera-se, previsivelmente, que a crítica tenha um papel de “vender”, dialogando diretamente com as suas “massas”, lubrificando a trilogia como uma “next big thing” do nosso panorama, visto que o filme é um quebra-cabeças para qualquer sala de cinema o programar (e uma passagem em sessão especial em Locarno fez com que saísse da Suíça sem um prémio que pudesse vangloriar como “atrativo” de marketing).

pathos-ethos-logos-2021-joaquim-pinto-nuno-leonel-

Deste lado preferi seguir o caminho da reflexão para o que acabei de ver, as imagens-sacra e religiosas em embate com o documental farsolas respirando através de uma estética de polarização. Por detrás dos protótipos a que chamamos enredos (três mulheres de diferentes gerações e de diferentes períodos, assim como manda a premissa divulgada, um “manual de instruções” que Truffaut referiu ser crucial para tantos filmes “inteligentes”, as aspas são herdadas da fonte original), que preenchem um retrato absoluto de epifanias, esconde um apoio dependente à sua beatificação, uma religiosidade saturada que amarra as “asas” a esta obra, projetada como “criatura de pensamento”. 

No fundo, “Pathos”, “Ethos” e “Logos” (a terceira parte roça ocasionalmente um amadorismo liceal ao nível de projetos-escolas, mas que tais caracterizações são tabus perante o carinho com que Pinto tem neste círculo de “amigos”) procura a dimensão humana, recitando a Bíblia e outras doutrinas teológicas, culpando o nosso Apocalipse pelo desfasamento para com a entidade divina (Manoel de Oliveira havia tentado tal "tese" no final rompante do seu incalculável "Acto da Primavera", em 1973). Em outras andanças, isto seria selado com a designação de “faith based”, com o intuito de converter os não-convertidos, mas em Portugal é confundido com intelectualização, filme fundamentalista sem fundamento (em pleno século XXI esperávamos maior senso crítico à Igreja e as suas bases deste mesmo nicho) que nos castiga como uma clara alusão ao estatuto de mártir, pedra basilar do Cristianismo. 

Vindo de responsáveis por maravilhas do nosso Cinema como “Uma Pedra no Bolso” (1988), um dos “coming-to-age” por excelência do nosso património, e hoje reavivado por debates atuais “Rabo de Peixe” (2015), esta trilogia serve como um teste de tempo, guiando-nos de maneira alguma, por outra propriedade sem ser o ego dos seus autores. Mencionando uma das frases de “E Agora? Lembra-me” - “o Cinema não é democracia, é tropa, com sargentos e generais" – (re)aproveito para salientar a por vezes necessidade de um “sargento” nessa peregrinação espiritual. Falta de um produtor que diga “ora bem, corta aqui, ali e … não mexe mais”.