Passeio com João de Deus
A Comédia de Deus (1995)
O isolamento leva-me a este estado de espírito, e este estado de espírito a João César Monteiro. É uma espiral viciosa de melancolia na “boa” companhia de João de Deus, que me enche de um sentimento inexplicável de “saudade” (essa palavra, ou antes sentimento que desejamos nós, portugueses, “vender” como exclusiva), ao mesmo tempo refletindo a suja natureza da perversão, encostando-o a uma naturalidade hoje inconcebível. João, o padroeiro das prostitutas e dos loucos, de Lisboa concretamente, é aqui uma criatura rastejante que nunca busca o perdão nem sequer a consolidação para com a Ordem Sagrada, vive, mais que vivendo, alimentando-se dos prazeres da carne e do desejo incontrolavelmente mórbido.
Em “A Comédia de Deus” (1995), segundo tomo da jornada deste singular alter-ego, que depois da entrada no Paraíso nada solicitado em “Recordações da Casa Amarela” (1989), refugia-se numa gelataria prestigiada, criando sabores excêntricos de teor nacional, e gerindo com luva e desinfetante o mesmo espaço. Sabia ele onde se iria meter! Não é só o cremoso deleite multi-sabor deste “Paraíso” (nome da gelataria é por si uma ironia do destino) que o faz “perder a cabeça”, são as colaboradoras, jovens (e cada vez mais jovens) que se encontram na sua alçada a sua derradeira perdição. Mimi, essa musa deixada para lá das memórias da “Casa Amarela”, converteu-se num fantasma, invocada sob o aviso do próprio Deus (o de enfiar um “dedo no cu” em seu tributo), contudo, a inocência é novamente fruto de ruptura - Rosarinho e Joaninha - esta última, filha do açougueiro, será objeto-mestre do seu fetichismo.
Mas não nos gratularemos por estarmos na presença de um velho “javardolas”, vampiro da jovialidade de outros (ou melhor outras), João de Deus, a criatura soturna de imensas artesanias é um romântico boêmio da melhor (e de pior) espécie. Passeia-se pelas ruas de Lisboa, observando, mentalmente anotando o seu quotidiano. Pelo seu redor, busca a beleza máxima, inexistente da sua mortalidade. São as peregrinações conciliadas com Johnny Guitar, servindo de mote a uma das três curtas experimentais ou prototípicas de “A Comédia de Deus” [“Passeio com Johnny Guitar”]. Neste objeto de somente três minutos de duração, Deus numa das suas incontáveis insónias, divaga pela noturna vida alfacinha.
Passeio com Johnny Guitar (1996)
O seu corpo pertence aquele terreno, mas a sua mente não, nela ouvimos recitação de “Johnny Guitar” de Nicholas Ray, mais concretamente o diálogo (“What took you so long …”), ou um tímido cantarolar de Monteiro perante essas mesmas invocações. A noite torna-se efêmera, dando lugar a um amanhecer cujos primeiros toques luminosos despertam os madrugadores para mais uma conta à sua passagem vivente. João de Deus assume-se como testemunha daquele “milagre”, cansado nessa sua existência arrastada, porém, paciente para com a vinda do novo dia, da nova rotina, da repetição e consequentemente a prisão mental que havia criado. Talvez seja esta a curta que emancipa-se da “Comédia’”, ao contrário da dicotomia “Lettera Amorosa” e “O Bestiário ou Cortejo de Orfeu”, sequências ensaiadas e mais tarde integradas na longa-metragem, que por sua vez, ambos cortejos para “desvirginar" as respectivas musas.
Voltando à “A Comédia de Deus”, o filme que concilia essa visão, esse sadomasoquismo de uma persona autodestrutiva, cuja utopia é o motivo para a sua deturpação. Não é só de “meninas” que Deus coleciona, é também as “memórias” impostas num livro de pensamentos, uma coleção cujo maior troféu se resume à “pentelheira” da Rainha Vitória (“God shave the Queen”, brada aos céus perante o presente agraciado). Esse álbum sintetiza não só a sua natureza, como também o tom caótico do filme, uma fachada que desmorona perante o incauteloso "pedreiro”. Assim João de Deus parece auto-sabotar a sua harmoniosa vida na solidão. Desde o seu cargo na gelataria, dando a provar um sabor asqueroso ao crítico Jean Douchet, aqui eventual sócio para uma fusão empresarial, mas antes dignar-se a um discurso contra os “reptilianos” políticos, condenando-os a rastejar para toda a eternidade ("És réptil e em réptil te tornarás”), isto sob a presença de um alto promissor na política portuguesa.
Claro que o apogeu da sua destruição está na concretização do seu lado perverso, dos banhos de leite à cornucópia de ovos, ritos calculados e obscuros subjugados à Joaninha, a sua nova coqueluche, que com carinho a encaminha para o ninho da sua fantasia (“até parece que estou a chocar pintainhos", diz tão docemente que até desejamos "libertá-la" daquele “circo”). É o seu erro, deixar que a fronteira do seu fetiche se ceda, indignando quem anseia pelo “ajuste de contas”. Só que João de Deus escapa, de dedo médio esticado para aqueles que lhe dirigem a sentença da sua morte (o gesso não impede de tomar atitude obscena). A lição, ou antes, a moral aqui praticada deve-se pouco, a somente condenar-nos a ficar.
A Comédia de Deus (1995)
Digamos que Monteiro não esculpe o tempo, faz do espaço a sua morada e da bizarria no seu quotidiano, sentimo-nos na normalidade naquela presença. João de Deus, aqui, desce aos Infernos em busca da sua “Beatrice” como a Divina Comédia de Dante (o título não é coincidência) e regressa de lá de “mãos vazias”, a experiência, essa, a condenação ao espectador, é de uma acidez satírica, que nem sequer “limpou-lhe a alma”. Monteiro como Deus troçam do espectador, e nesse gesto de clemência, rasga a pele de “clown” precisamente catalogado em “Casa Amarela”, é antes disso um sátiro, essa criatura anedótica, meio homem, meio cabra, que encara a sua trágica existência como a comédia de uma vida arrastada. Porém, acima de qualquer simbologia, qualquer alusão teológica e mística nesta sua erudição, é a melancolia de um homem que condena outros, quer a ficar ou a rastejar, mas condenado a si, a procurar-se por entre aqueles costumes seus, nada brandos, envolvidos na mais corroída solidão. No fundo, toda esta trilogia não passa nas crónicas de um homem só e que só permanecerá.
E assim, é o desejo, esse diabo no corpo, visto como escape da monotonia dos seus dias. O jejum é a força de um espírito que cede como revolta à banalização de que tornamo-nos. Monteiro / Deus, ego e alter-ego, são somente “carne fraca” que aguardam o fruto proibido, essa tentação que um dia expulsou Adão e Eva do seu predestinado Eden. Por quem ou porquê, não sei explicar, mas olhem, entre mortais e diabretes alguém terá que escapar.
"Hello darkness, my old friend"