«Para lá das Colinas» existe uma obra-prima!
Nos últimos anos, temos assistido a uma nova vaga de cineastas romenos que, de certa forma, contagiam a cinematografia mundial com o seu estilo severo e um tom realista cruzado com uma manifestação artística digna dos palcos teatrais: a mise-en-scène intimista. Esta ascensão de autores tem sido comparada a um fenómeno ocorrido em França nos anos 60 – falo, obviamente, da Nouvelle Vague –, uma elite de realizadores irreverentes que emergiram das sombras e desafiaram as mais variadas componentes do cinema mainstream e da produção de estúdio. Contudo, ainda que a Roménia não tenha exercido o mesmo impacto em termos de influências, só o tempo o dirá. Certo é que o cinema produzido naquele país tem sido distinguido pelo mundo inteiro, precisamente pelas suas características, que emanam o íntimo de uma nação ainda escondida entre as trevas.
Narrativamente rígido, o cinema romeno – como é o caso deste “Beyond the Hills” (“Para lá das Colinas”), de Cristian Mungiu – contrasta com o realismo norte-americano. O espectador está por sua conta, ditando julgamentos ou acompanhando o enredo sem que a obra ceda ao facilitismo, ofereça explicações ou manifeste compaixão pelas suas personagens. É um mundo cinematográfico cruel, sem piedade nem clemência para com o público.
Cristian Mungiu, que há alguns anos apresentara o drama de duas jovens confrontadas com as ilegalidades do aborto no premiado “4 Months, 3 Weeks, 2 Days” (2007), mantém-se fiel à sua abordagem severa em “Beyond the Hills”. Nesta nova incursão cinematográfica, convida-nos a mergulhar ainda mais fundo nas trevas que assolam um país cinzento, frágilmente intrínseco e ausente, traçando um debate parcial sobre a disputa entre Religião e Medicina, sem jamais pender para um dos lados.
Mungiu leva-nos ao reencontro de duas amigas que cresceram juntas num orfanato. Alina (Cristina Flutur) regressa à Roménia após anos de trabalho na Alemanha e pede abrigo a Voichita (Cosmina Stratan), agora freira num convento ortodoxo. A jovem é recebida com frieza pelas outras religiosas e, sobretudo, pelo sacerdote. Voichita tenta protegê-la, mas os seus esforços revelam-se vãos face ao julgamento alheio. A situação agrava-se quando Alina é diagnosticada com uma espécie de esquizofrenia e o hospital local se recusa a interná-la. Sem outro refúgio, vê-se forçada a permanecer no remoto convento, onde os seus ataques de histeria e violência se intensificam. A medicação é interrompida, a comunidade teme-na e o sacerdote decide exorcizá-la.
Com um leque de atores de bandar os céus e responder com exatidão o naturalismo requisitado, a dupla protagonista constrói uma cumplicidade frágil e obsessiva. Mungiu orquestra um ensaio dramático de proporções quase épicas. “Beyond the Hills” surpreende pela forma como apresenta estas suas personagens, registando-as na história através de planos que exprimem o melhor da mise-en-scène e de um argumento que, por vezes, desafia a austeridade narrativa. o espectador encontra-se forçado a magicar o visto e o não-visto, tendo o fora-de-plano desempenhar esse papel importante no realismo ditado, um realismo o qual não somos onipresentes nem omniscientes, apenas embebem daquilo que a fonte nos dá.
Intenso, ambíguo e, por momentos, intrusivo, este é mais uma prova do talento do realizador romeno, que parece destinado a liderar uma nova vaga de cineastas estilisticamente maduros. O novo cinema romeno atinge aqui um novo patamar. Fantasmagórico!