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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Para Farhadi, heróico é questionar a moral

Hugo Gomes, 05.03.22

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Penso que se o seu objeto fílmico é sobre as pessoas e as sociedades a que correspondem – por detrás do aspeto político – até temos que abordar a moralidade. Não quero ser um cineasta político, porque não dialogo diretamente com a política, até porque não é essa a minha função enquanto realizador. Já sobre a moralidade, isso sim, é do meu respeito. Procuro algo que me diga que isto é certo ou é moralmente errado. Não sabemos como o calcular, por isso é que os meus filmes são acerca de dilemas. Como o caso de “o filho tem razão”, mas questionamos o porquê dessa razão e assim passamos ao campo moral das coisas. Mas eu não embarco nos filmes como incentivo para criar situações morais, apenas descrevo-os e deixo o espectador ir em direção ao território-moral.” [Ler a minha entrevista aqui].

Asghar Farhadi deseja e demonstra separar-se do rótulo de "cineasta iraniano”, o tipo de cineasta que a curiosidade ocidental vê com “bons olhos”, aquele que se comporta como ativista anti-sistema e de denúncia político-social, diversas vezes sofrendo com as consequências desses seus atos fílmicos (ver os casos de Mohammad Rasoulof e Jafar Panahi). Não com isto afirmando que o Ocidente não olhe com “carinho” para Farhadi, aliás, a moralidade é também política e acima de tudo um desafio à nossa consciência ditada pelos costumes do Velho Mundo ou da cultura judaico-cristã. Essa mesma declaração de um cinema moral e que provoca as convenções da mesma, estabeleceu-se como bandeira produtiva do realizador, que ocasionalmente “sai da sua toca” para elaborar exercícios europeus (“Todos lo Saben”, “Le Passé”) com enfoque nas veias teatrais que o próprio refere como sua génese.

Mas é no Irão que os labirínticos dilemas tomam posição, chocando culturas (a Oeste ou a Este) e em certa forma colocando-as à luz da mesma lente. Ora, “A Separation” (2011), um divórcio à moda iraniana que alberga um joguete de consciências, conquistando Berlim e posteriormente o Òscar, atribuiu ao cineasta o seu passaporte de “world cinema” (designação de cinema internacional que chega e popularidade nos EUA). Passados cinco anos, a estatueta volta a “escorregar-lhe” para as mãos com “The Salesman”, uma combinação necessária do universo dramatúrgico de Farhadi (com base na peça “Death of a Salesman” de Arthur Miller) com o tal “território-moral” a diluir as duas dimensões numa concebível ao espectador-testemunha-júri. Depois da pausa em terras espanholas com “Todos lo Saben” (com resultados não tão satisfatórios assim), “A Hero” traça ainda mais a fundo essa referida veia de repto, elaborando o trilho de um recluso que orquestra um plano para atingir automaticamente a liberdade por mérito próprio. Asghar Farhadi não esconde o jogo, a personagem é imoral e o seu ato é de má índole, mas é o percurso trazido pelo mesmo, por vezes embatendo em conflitos “kafkianos”, que o espectador é incentivado à mais custosa das questões: “podemos ter empatia para quem empatia não possui?

Através deste “regalo”, somos induzidos a um confronto entre razões e uma proposta de desconstrução arquitetónica (cada com a sua perspetiva) à definição de “herói”, o indivíduo máximo da moralidade na sociedade. O retorno ao Irão é propício a esses dilemas, uma sociedade “estranha” aos olhos ocidentais opera como uma distopia possível sobre as mais variadas questões morais e éticas. Como tal, “A Hero” é uma “caixinha” de tópicos para um debate pós-sessão, e Farhadi feliz para que isso aconteça.