Pandemónio tecnológico
Eles destroem tudo, eles destroem tudo
Eles destroem tudo e não deixam nada
Espero que Zeca Afonso não se revire no seu eterno descanso com esta apropriação e adaptação da letra do seu “Os Vampiros”, mas não pude deixar de desgraçar tal música após esta destruição em massa que foi batizado de “Godzilla X Kong: The New Empire”, mais um episódio do universo partilhado comumente denominado de “Monsterverse”. Este, por sua vez, apropria-se de uma já tradição japonesa, o cinema kaiju, e reveste-a de produção excedente e CGI a rodos.
A “coisa” começou em 2014 com um ensaio mais ligeiro e encostado ao clássico roteiro do lagarto-rei que todos conhecem por Godzilla, num filme assinado por Gareth Edward que havia mostrado em 2010 como fazer um “filme de monstros” por batuta e meia [“Monsters”]. Paralelamente, produziu-se “Kong: Skull Island”, uma releitura do símio gigante virado património hollywoodesco e do imaginário literário de Virginie Despentes. Desta vez, sob juras de vingança de Samuel L. Jackson, transforma-se num oponente para futuras estâncias/rounds bestiais.
Dois avançam e “Godzilla” é novamente protagonista, com a sua sequela e uma galeria de conhecidos monstros do seu universo [“Godzilla: King of the Monsters”, 2019]. E em pleno “lockdown”, o confronto entre o réptil bípede e o primata maior que o arranha-céus. Adam Wingard, em tempos considerado uma promessa do cinema de género [“You’re Next”, “The Guest”], tropeçando em armadilhas mercantis [“Death Note”], enfia-se num buraco tecnológico em prol de um cinema para massas, mas sem cariz humano que o valha. Pois bem, voltou para a sequela!
Entre esta chuva artificial e entre um “homenzinho” dentro de um fato fazendo de uma cidade de miniatura o seu teatro de “faz-de-conta”, optamos pela “graciosidade” do segundo por um simples motivo: Tradição. Em “Godzilla X Kong: The New Empire”, a “tradição” é a sua banalização enquanto espectáculo cinematográfico. Cidades são destruídas com naturalidade avessa, distanciando este mundo do nosso reconhecível (a anos-luz da geografia familiar do reboot de 2014). As personagens são inexistentes, estando lá apenas por arranjos narrativos, atalhos ou macguffins para a megafauna lutar entre si, espelhando mais humanidade que os próprios humanos (foi a regra mantida desde “Godzilla Vs Kong”, logo é para manter). Por exemplo, num terceiro e conflituoso ato, com a grande batalha que já se estrutura como imperatividade argumentativa, Rio de Janeiro serve-se como cenário dessa iminente destruição, terraplanada aqui como um cataclismo excepcional, e mesmo ausente do nosso olhar, danos colaterais são cometidos, no final entre escombros e o apocalipse testemunhado, aplaude pelos titãs destruidores, os “bons”, como ordena a irracional lógica deste maniqueismo.
Portanto, nem vale a pena estressar com o óbvio, o barulho faz-se, e por cá, os espectadores surdos cedem ao caos oferecido sem a menor resistência. É lúdico de se ver, acreditam nisso, e assim mantêm-se reféns ao tecnologicamente fácil. O que enfraquece ainda mais este “The New Empire” é que estreia a meses do, e podemos já sublinhar, oscarizado “Godzilla Minus One”, gerado em terras do Sol Nascente, demonstrando o quão respeito Godzilla ainda acerca na memória de um país. Os yankees apenas o importam, e é isso.
Não é Série B, nem nunca foi …