"Pai, se possível, afasta de mim este cálice"
Neste preciso momento não consigo abordar “Il Vangelo Secondo Matteo" (1964) sem começar por o referir, em modo de provocação, como “carta de trunfo” a um (outro) filme que me impôs um nó na minha garganta, nos últimos dias.
Numa semana em que uma tríptica produção de Joaquim Pinto e Nuno Leonel chegava às salas (ou sala, para ser mais preciso), o célebre filme de Pier Paolo Pasolini era reposto no circuito de projeção. Se por um lado, a dupla portuguesa expunha um cristianismo inabalado, martirológico, e com isso, sem releitura para além das interpretações milenares das escrituras, pregadas e pregadas até se estabelecerem em senso comum, na pedra basilar do nosso mundo ocidental (e anglo-saxónico). Esse medo da morte, e dependência do nosso destino (como da nossa Humanidade) nas "mãos" de um ente divino, embatem no “Cavalo de Tróia” construído por Pasolini, uma adaptação fiel ao evangelho mais que decorado, e por sua vez uma reinterpretação aos escritos, ressaltando a veia marxista e ativista de Jesus Cristo, aqui interpretado pelo estudante espanhol Enrique Irazoqui (que na altura estudava Economia em Itália), liderando um elenco de não-atores.
O anterior poeta, crítico, e até então, realizador celebrado, premiado e constantemente sublinhando a sua veia provocatória (anteriormente havia realizado a curta “La Ricotta”, irando as comunidades religiosas com um desconstrução aos simbolismos cristãos), pretendia um ensaio contrastado com as grandes produções, aliás, apropriações hollywoodescas dos Evangelhos, nesse aspecto, arquiteta uma aproximação ao neorrealismo italiano, filmando uma obra na sua naturalidade; paisagens naturais, pessoas genuínas (a realçar a própria mãe como Maria em alturas de crucificação) e artifícios engenhosos e criativos de recriação dos milagres em tons artesanais.
“Il Vangelo Secondo Matteo" responde ao apelo que as muitas obras de cariz religioso não fazem, e como Pasolini assumiu-se ateu, mas culturalmente católico, mais impressionante se torna a sua viragem e tratamento nesta “maior história de todos os tempos” (entre aspas como menção a um ambicioso projeto norte-americano que estreava no ano seguinte), fruto do seu fascínio pelo Verbo, ou a poesia escondida (ocultada pelo obscurantismo religioso que prevaleceu) no Evangelho. Novamente frisando, é na sua fidelidade, citando copiosamente a obra-base, que o realizador encontra e enfatiza o tom emprazado nas escrituras. Cristo, não representado aqui como um somente e “mero” Messias, é uma figura politizada que prega a religião das religiões na sua crua forma, ostentando punhos fechados contra burguesias e defendendo o proletariado com tamanha fé e sabedoria, e raramente sem resposta à sua altura.
Marxista, acusado por muitos, e mais fundamentalizado tendo Karl Marx como um dos ídolos de Pasolini, “Il Vangelo Secondo Mateo” funcionaria na perfeição como uma obra desse campo, algo propagandístico (segundo as más línguas do outro lado da barricada), resgatando o lado franciscano e igualmente preservando a misticidade sem a utilização gráfica implicada à conjugação do misticismo. É num verdadeiro “faz-de-conta”, em paisagens áridas da Calábria (mimetizando a Palestina), com o apoio de planos gerais, conjuntivos, “abraçando” multidões e escadarias em encostas íngremes como se uma pintura babilónica de Pieter Bruegel se tratasse, composição por vezes desafiada por grandes planos dos seus atores, nomeadamente a de Jesus, de olhos fixos e determinados, numa inexpressividade contrariada à grandiloquência musical integrada por Bach, Mozart e cânticos religiosos.
É um filme atípico, certamente, e o é num sagrado sacrilégio (mesmo que incompreendido pelo seu acompanhamento, erradamente tido passivo, da matéria-prima), tendo reavido o amor, sentimento contrariado pela Igreja ao longo dos tempos, deturpando os ensinamentos do Nazareno em prol da sua sobrevivência institucional. É este tipo de tratamento, acima do mero lisonjeamento, que separa a “religiosidade” existencial de Pasolini com a religiosidade epifânica de Pinto e Leonel. Pasolini não se fixa, interpreta e constrói a sua realidade (“o cinema ao natural”, como dissera uma vez), e nesse seu quadro nasce um dos retratos mais emblemáticos - do Nascimento à Ressurreição - de Cristo no Cinema.
PS: sobre a postura algo rebelde de Jesus na obra de Pasolini, é bom recordar (ou descobrir) o polémico “As Horas de Maria” de António Macedo (1977), que se alimenta dos ecos desse tratamento, porém, elevando o seu tom provocatório ao nível de uma denúncia herética. Mas no fundo, é um dos filmes mais impressionantes e acidamente fracturantes da nossa filmografia.