Ouro, para que te quero?
Oh preguiça … Tem piedade sobre a nossa longa miséria."
Não penso que um crítico deva pedir desculpa pelas passadas tentativas de premonição, e por isso não o farei, até porque ainda não há motivos para me descolar da afirmação convicta que fiz há alguns anos, mais precisamente aquando da estreia de Ico Costa à mesa dos “crescidinhos” da longa-metragem, com “Alva”. Referi, nessa ocasião, que o realizador, com essa sua façanha, estava longe de me motivar ou até mesmo de remexer o caldeirão cinematográfico em que o “cinema português” se encontra. Contudo, com “O Ouro e o Mundo”, mesmo notando os vestígios do filão do “criminoso a monte”, consigo encontrar neste novo olhar uma vontade intrinsecamente forte que me leva a reconsiderar o meu julgamento.
Filmado em Moçambique e inteiramente ligado a Moçambique (com fotografia de Raul Domingues), este é um filme sobre a precariedade, sobre juventudes violentamente arrasadas pela passividade, pela desconexão com a ambição e pelo estatuto de “fura-vidas” que se esforçam por ostentar. Talvez nesta fúria de viver um sonho de esquina resida um reflexo crítico de um pensamento ocidental sobre sucesso e conquista, ou do árduo trabalho numa sociedade ultra-capitalista, monologados, resumidamente, num beco, de um protagonista relatando a sua experiência longínqua e desaconselhada em Portugal, enquanto sente o momento, o imediato, como o seu único lugar de pertença. Há uma ideia vinculada de felicidade a ser rastreada fora do radar do capitalismo e dos seus dogmas.
As marcas de “Alva” estão lá: os constantes tracking shots, o esforço da câmara à boleia das suas personagens, como se deslocasse lado-a-lado por deslocamentos sem tempo, por trilhos “ordinários” – capim, mangais, terra batida – à procura de ouro ou de qualquer outro mineral reluzente que os resgate do martírio do trabalho-escravo. São delírios por carreiras espontâneas de hip-hop, de sucessos instantâneos, daqueles que as redes sociais premiam; são ânsias de partir, de ir para longe – longe de tudo e, sobretudo, longe das responsabilidades (até das suas consequências).
Ico Costa não filmou uma nova “cantiga dos desgraçadinhos”. Pelo contrário, desafia-nos a encontrar um estado de alma, de jovens presos a uma carcaça que renegam por completo. O trabalho – essa palavra maldita – é vista como conselho, dica ou sugestão passivo-agressiva acorrentada a uma convencional ideia de “adulthood”, do qual é respondido apenas com a invocação da “mãe preguiça”, que dizem ser prima do progresso, porque, segundo consta, se não fosse ela, o Homem não teria inventado a roda.
E coincidências das coincidências, o nosso protagonista chama-se Domingos [Marengula] – talvez o nome perfeito para ilustrar os dias da semana mais preguiçosos e molengões possíveis, mas que para Ico Costa é a sua grande fonte de energia.
Para segundo filme estamos num bom caminho!