"Ossos": a condição fraturante de Pedro Costa
Concluída a rodagem de “Casa de Lava” (1994), cujas filmagens decorreram na Ilha do Fogo [Cabo Verde], vários habitantes solicitaram ao realizador Pedro Costa para que entregasse cartas aos respetivos familiares de Lisboa, grande parte deles residentes no desolador bairro das Fontainhas, nos arredores da Amadora. Com esta experiência Costa integrou uma comunidade aprisionada por uma barreira invisível social, confinada à sua própria degradação, num “paraíso prometido” não citado em “Casa de Lava”.
É certo que segundo o próprio Pedro Costa, existe mais “portugalidade” aí que no país inteiro e “Ossos”, a sua obra seguinte (estabelecendo um catalisador dessa perdição identitária, uma cultura contagiada e híbrida que “promete” estampar nas velhas tradições já constituídas) é o seu claro objeto desse mesmo estudo teorizado. Pedro Costa emana um drama sob fortes toques documentais, aliás, é evidente encontrarmos um manifesto etnográfico em todo o seu sentido e uma exploração digna do estilo neo-realista italiano. Sendo que o lado ficcional, preservado por um realismo quase formalista, mas em pleno espírito de rebeldia para com a câmara, é afetado por uma constante demonstração de atos metafóricos e alusivos.
A história que centra em redor de uma criança não querida pelos seus progenitores, abandonada à sua sorte e à deriva do respetivo destino, é o ponto que une todo um conjunto de personagens desesperadas e de igual situação identitária. Trata-se do espelho de uma sociedade empestada por um futuro negro e desesperante, Costa profetizou a destruição de um captado modo vivente (a demolição do bairro das Fontainhas em 1999) e a dispersão dos habitantes com que havia convivido durante anos, os seus anti-heróis cinematográficos, mas heróicas figuras da realidade.
Com “Ossos”, o realizador afasta-se claramente da ficção cinematográfica imposta pelo Cinema Novo, por sua vez influenciada pela Nova Vaga francesa, que fora vista nos seus anteriores “O Sangue” (1989) e “Casa de Lava”, para se lançar numa íntima docuficção. Costa perde a olhos vistos a formação académica e revela a sua rebeldia fílmica para o grande ecrã, sem perder assim o seu gosto pelo estético, pelo planos renascentista e pela fotografia sombria e melancólica em toda essa transição. Depois do catalisador que fora “Casa de Lava”, Pedro Costa abre a sua trilogia das Fontainhas com esta romantização.