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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Os Restos da Alma

Hugo Gomes, 01.11.22

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Durante anos, instalamos na “ruralidade” um olhar observacional, como um trabalho de campo se tratasse no âmbito de documentar para mais tarde possível comentar, e só desta forma seguimos para novas orações nestas estâncias. 

As aldeias, nomeadamente as de Trás-os-Montes (ainda hoje o mais remoto do Portugal continental, embora o mais perto da nossa cinematografia) têm servido de palco para essa condução de novas histórias, e quiçá, de novos movimentos suscitados em narrativas e estéticas (António Reis e Margarida Cordeiro colocaram os seus pés em terras como estas [“Trás-os-Montes”, 1976], desde então o cinema português nunca mais foi o mesmo). Recentemente, vimos Tiago Guedes em crimes e bodes expiatórios em “Restos do Vento”, filme de vários tons que se afastava da "ordem das coisas” que o seu anterior “A Herdade” colocaria como fasquia alta (isto, enquanto aguardamos pelo slasher trasmontano de Gabriel Abrantes), já “Alma Viva”, marcado salto da curta para o formato longa, conquista um lugar próprio ao reduzir tramas e subtramas para a percepção / perspetiva da sua pequena protagonista, Alma (Lua Michel é uma preciosidade de olhos amargurados), que lida com a dimensão do luto. 

A sua maior inspiração - a avó (Ester Catalão) - sucumbe em condições estranhas, suspeitamente amaldiçoadas, um desaparecimento que se manifesta em Alma (algo esotérica) para lá do compreensível. É o Diabo, garante quem mais temor guardam do desconhecido. É bruxaria como a avó, ouvimos de rancor e vinganças permanecidas. Mas o que importa é levar essa cerimónia fúnebre com o seu quê de tragédia, o morto que “espera” pela derradeira visita, o corpo decompondo contra a sua vontade (e a dos seus familiares) e cujos infortúnios atingem a aldeia que, quanto a nós, tão bem merece. Cristèle Alves Meira leva-nos ao limbo entre o terreno e o espiritual, o preconceito e a superstição, a forma e a abstração, um filme que sugere o efeito sobrenatural numa comunidade, utilizando essa qualidade de género como um embarque à emancipação feminina, ou, como é sugerido a meio da obra pela sua frase mais gratuita (“Mais tarde ou mais cedo todas as mulheres independentes são acusadas de bruxaria”), pela reação a essa mesma virtude. 

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Tal como o “Crime da Aldeia Velha”, a adaptação de Bernardo Santareno por Manuel Guimarães (1964), Cristèle remexe no desconhecido, nas acusações fáceis e sem culpas a territórios de bruxedos e pactos infernais, a inquisição a um biótopo condenado pelo seu medievalismo, uma crendice e uma entranhada religiosidade cristã que impede linguagens próprias. Enquanto o trabalho de Guimarães assentava na busca desse permanente medo e o atirava a uma fogueira de contemporaneidade (sequência dúbia que foi esse final de 1964), “Alma Viva” incentiva a modernidade (emancipação, ruralidade, portugalidade e até emigração) e a banha com essas correntes arcaicas, um pensamento ainda instituído, ou melhor, intrinsecamente presente. 

O resto é narrativa, sugestiva, catártica e subtilmente enfurecida. Contágios num realismo, “mágico” como muitos descrevem seguindo em comparação ao método de Alice Rohrwacher (“Lazzaro Felice", “Le meraviglie”), porém esse estágio “infestuoso” já se encontrava em Cristèle, por entre campos de víboras ou heróis invisíveis, o seu cinema formava a olhos vistos e para além dessa perspetiva. “Alma Viva”, em certa parte, preenche a promessa de um novo nome à lista que vai ficando longa em candidatos a um formalizado “novo cinema português”. 

Movimentos à parte, este é um filme enriquecedor sem abalar a sua fortalecida simplicidade, nesse aspecto, Cristèle emburrica o “storytelling” sem nunca o tornar imperceptível nem infantilizado.