Os príncipes de cavalo branco também falam crioulo
Numa conversa descontraída enquanto o seu filme era exibido numa segunda sessão da 17º Indielisboa, Basil da Cunha referiu-me que este seu regresso ao “bairro” consistia em filmar as pessoas que não conhecera completamente, uma outra geração que não a sua e que mesmo assim, encontrava-se presente no seu anterior “Até Ver a Luz”, porém em segundo plano. Esta mudança de protagonismo, ou antes mais, uma reveza de forma a continuar, hereditariamente, este mesmo universo. Será esta a sua única maneira de preservação?
Com um punhado de curtas contabilizadas na sua filmografia e a mencionada longa estreada em 2013 que envolvia o bairro da Reboleira (Amadora) em tons de misticismo quase xamânico, Basil (e os espectadores) retornam à comunidade pelos olhos de Spira (Michel Spencer), jovem “acabadinho” de sair da casa de correção, após 8 anos no estabelecimento. De volta a casa, deparará com um território do qual já não reconhece, constituído por novas hierarquias e por novos objetivos, enquanto o próprio bairro desmorona para dar lugar a outras “realidades”.
O dito jovem, filho da “teta” da Reboleira, detém outros desejos, o da evasão, o de outras ambições e a aventura – talvez tendo como imagem o seu pai residente na Suíça – em novos lugares e heranças. Sim, é uma personagem que anseia pelo novo, repugnando o “velho” endereçado ao seu passado delinquente, que o projeta em mundanos “adornos”, seja pela amiga agora virada mãe solteira, seja pelo semi-astral cavalo branco existente algures num descampado ali perto. Em comparação com o seu “Até Ver a Luz”, Basil da Cunha indicia uma obra mais térrea para com o seu realismo, mas nunca perder o gosto pela fantasia materializada. É um filme, que tal como o protagonista, não pretende sujeitar-se às primeiras instâncias.
A jornada de Spira, no seu gangue e no seu biótopo, é um pego de cinema de guerrilha, povoado por gente-local que dialogam diretamente connosco [espectadores]. Sentimos aqui a voz dos marginalizados, mas não os retendo enquanto instrumentos de uma politização, “O Fim do Mundo” (curiosamente, quase partilhando o título com outro conto de desprezados [“Um Fim do Mundo” de Pedro Pinho]) não crê em utopias, mesmo resistindo para nos trazer dos confins do seu cosmos, os seus “miseráveis”, os ditos portugueses de segunda, anos e anos “empurrados” para as estribeiras da capital. Cada um a mercê da sua própria sorte. É uma discriminação espacial, esta, a da formação do dito bairro social, porém, não seguiremos por essas linhas, o filme é mais que o grito de guerra no propósito de um ativismo. É um retrato, literal como metafórico, de uma população sem lugar na nossa sociedade, escorraçados até mesmo dos seus condenados lares.
Nesse sentido, “O Fim dos Mundo” paraleliza com o cinema de Pedro Costa nos últimos anos, não numa mimetização estética ou formalizada, e sim no jeito como encara os dramas, porventura, esquecidos perante um ecossistema em constante desabamento. Aquele lugar, a Reboleira, tornar-se-á um não-lugar, uma memória distante. Para Spira, essa recordação a que certo dia apelidou de “casa” converteu-se no seu motivo de luta, não pela sua preservação, e antes pela sua separação.
“O Fim do Mundo” “captura” um universo em extinção e o encara como a sua propriedade, preservado em âmbar, neste caso em filme com as promessas da sua “eternidade”. Uma coprodução luso-suíça que envergonha muitos da sua espécie e da sua nacionalidade pela forma como bravamente utiliza o “know-how”, pavimento de sugestões, fora-de-campos e o “desenrasque” (palavra tão portuguesa) para nunca perder a credibilidade deste quadrante de violência em cada esquina.
Calculado até à medula, revoltado no seu espírito e com a garra de quem deseja fazer Cinema a todo o custo. Eis um portento!