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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Os escravos do Novo Mundo

Hugo Gomes, 15.02.21

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Deepa Mehta, realizadora indo-canadiana reconhecida pela trilogia dos elementos (“Fire” em 1995, “Earth” em 1996 e “Water” em 2005), em certa parte, instrumentaliza o livro de Shyar Selvadurai e, dentro desta, a sua interior história de “coming-out”, para abordar um conflito que perdurou mais de duas décadas na Sri Lanka. “Funny Boy” é um dos raros filmes que aborda a Guerra Civil cingalês, tendo como suplemento a questão da homossexualidade nesse mesmo território (ainda hoje proibido).

Assim, mergulhamos no drama de Arjie (Brandon Ingram), que enquanto criança (Arush Nand), e sob incentivo da sua progressista tia (Agam Darshi), brincava de menina ou aspirava ser ator, mesmo sob o olhar reprovador do seu rígido pai (“os atores são inúteis”). Na sua adolescência, confronta-se com as transformações que tem sentido, sem possuir apropriadas armas para o lidar, porém, não era apenas o seu “eu” que se encontrava em estado de mudança, o seu redor, o mundo que conhecera passava por uma lenta, mas violenta insurreição.

Narrativamente, “Funny Boy” é um filme de natureza esquemática, dividido entre os tais oscilantes “campos de batalha”, mas nada disso impedindo, por momentos, demonstrar a sua sensibilidade, não apenas na composição e carinho do seu protagonista, como também na imagética como que contrai. Há ainda uma tendência de trazer para este território exótico, e em plena ebulição social, um socialismo ocidental. Arjie adquire as suas armas de arremesso, para aquela que é a sua mais complexa “guerra”, na música importada (de Eurythmics a David Bowie, passando pela consolidação de “Every Breath you Take” dos The Police) ou por vias de Charles Dickens e o seu romance “Um Conto de Duas Cidades”, que por sugestão do seu professor de literatura, converte-se numa imaginada experiência pessoal.

Facilmente, poderíamos gritar perante estes elementos reunidos, de “colonialismo”, mas Deepa Mehta deseja imprimir um cunho pessoal nesta história, a sua vivência enquanto migrante. “In this New World, you’re free slaves” (“Neste Novo Mundo, somos escravos libertados”), a frase que ecoa no desfecho desta jornada, é mais que uma somente “punch line” sovada antes da descida da cortina, é um statement de quem encara a migração como uma oportunidade de reinvenção. A partir daqui, Mehta ou mesmo Arjie poderão ser os indivíduos que sempre sonharam ser, e do qual foram impedidos de se tornar.

“Funny Boy” (que foi o primeiro candidato canadiano ao Óscar de 2020, tendo sido desclassificado pelo excesso de inglês, um pouco à imagem do português “Listen”) é um pequeno filme sobre as nossas próprias projecções e ambições.