Os defuntos e vivos coabitam em memórias de um Brasil (não tão) distante
“Todos os Mortos” não é uma história “morta” invocada como conveniência, é um retrato de reflexão sobre os nossos próprios fantasmas, aqueles que assombram as nossas linhagens e que ainda permanecem escondidos nas sociedades várias, a fim de conquistar o seu desejado lugar de pódio. Este é claramente um filme de época sem o ser, uma variação de género que emprega o visível e o invisível, a resistência com a decadência, as mudanças que custam a atingir e que se cobrem com o seu manto de ilusão.
Pois bem, dirigido e escrito a meias por Marco Dutra e Caetano Gotardo, “Todos os Mortos” leva-nos à viragem do século XIX para o tão aguardado XX, numa São Paulo ansiosa em apagar os seus rastos históricos (assim como o Brasil atual deseja). Na avenida, uma casa, uma família de três mulheres que manifestam o seu luto pela morte da sua criada (assistimos a um momento em que escravos são uma somente palavra de ontem, porém, ainda não esquecida e fora do vocabulário). O tempo passa e as sombras acercam a residência e das suas memórias.
Habituados ao cinema de género brasileiro, muito deles erguidos nestes últimos anos pela produtora Filmes do Caixote, onde os realizadores integram (basta recordar “As Boas Maneiras”, de Dutra em conjunto com Juliana Rojas, um conto de fadas paulista com lobisomens à mistura). Pequeno empreendimento de Sara Silveira, produtora veterana e resistente face à situação cada vez mais precária e sufocante do audiovisual brasileiro. Assim o proclamou, gritando emotivamente por essas mesmas palavras – “Resistência” – na apresentação de “Todos os Mortos” em Berlim deste ano.
A obra toda compreende-se numa espécie de passiva resistência com que olha para o passado trazendo com isso os reflexos do presente e consequentemente do futuro. Abordando os temas cortantes, hoje em voga pela acesa discussão motivada pelas redes sociais ou das políticas populistas que empregam o seu estandarte identitário. Nesse sentido, é fácil encontrar analogias, similaridades e diálogos cruzados com mira apontada para o nosso quotidiano. É o Brasil, mas bem poderia ser outro país qualquer.
Porém, não pensem que toda esta inserção é puro ativismo, fulgor de causas embrulhadas em propagandas escorridas, “Todos os Mortos” joga estrategicamente com os maneirismos dos seus autores (tendo em conta as suas experiências em histórias fantásticas não assumidas), a construção de um atípico caso de assombração, onde a fisicalidade dos planos de pormenor ou os point-of-views são armas que o espectador leva consigo para enfrentar o suposto sobrenatural. A invisibilidade sugestiva. E é através desses utensílios visuais que o filme adquire o seu bem-haja sensorial, invocando texturas ou cheiros hipotéticos, a terra cravada nas unhas da sua protagonista cada vez mais cedida ao tempo e o odor de café que ostenta-se como adereço histórico. O som, outra mais-valia para a experiência meta-temporal, alia-se também ao esqueleto de um filme que se quer esquematizado, em termos de personagens e figuras ancestrais, para nos salvaguardar com certa distância.
É uma atmosférica discussão sobre o racismo espectral, sistemático e ainda hoje em fortalecida pela legitimação da intolerância (principalmente, isso mesmo, no Brasil). Existe uma ideia algo abstrata que o preciso momento da abolição esclavagista levou-nos automaticamente à tolerância, às ‘novas’ causas sociais que remetem à igualdade e fraternidade, quer racial, género ou de outra natureza. Um engodo, visto que a transição foi rompida sobretudo na história brasileira, o processo atrasado, por vezes “varrido” para debaixo do seu tapete. “Todos os Mortos” apoia-se nesses factos, trazendo à luz … diria mais apropriadamente, à escuridão … o debate num contexto ficcionalizado, fantástico e meta-alusivo.
Um filme de idéias, atitudes e técnica.