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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Ordem e Progresso!

Hugo Gomes, 12.11.22

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O problema do Brasil é um problema moral (...) Não há crise no Brasil”, a resposta recolhida por diferentes brasileiros, destacando-se a sua pele branca, banhada ao Sol em plena estância balnear, com o objetivo prazeroso de adquirirem o seu solicitado bronze. É o festivo litoral, esse Brasil de “olhos vendados” à outra metade, o Brasil interior e nordestino, que como bem vimos nas últimas eleições presidenciais, divergem em massa quanto ao futuro da sua terra de Ordem e Progresso. Ora, esses dois “Brasis”, a do litoral do qual este “Maioria Absoluta” (1964) atribui palco, perante os privilegiados e cómodos com a sua “estabilidade”, preocupando-se maioritariamente com o som da “reportagem”, e depois a do interior, de pele escurecida pelo Sol árduo (aqui a grande estrela adquire outra conotação, não o luminoso prazer, mas o cansaço do dia-a-dia), não-alfabetizados (80% da população brasileira era analfabeta, o que segundo a Constituição da época, eram impedidos de exercer o voto), cujos relatos abordam os variados problemas, esses, negados pela “gente privilegiada do Atlântico", como a crise habitacional, a crise alimentar (as queixas sobre o excesso de produção de açucar), a crise educacional, entre outros. 

Por vezes há que entender os “problemas de ontem” para perceber os “problemas do amanhã”, e nesse aspecto, NOVOCINE, plataforma lançada há um mês com perfil gratuito, decidiu embarcar na “aventura” deste “Maioria Absoluta” - o segundo trabalho do importante cineasta Leon Hirszman (“São Bernardo”, “Eles não usam Black-tie”, “A Falecida”), que dedicou uma obra inteira a “remexer” entre classes sociais - como “aperitivo” ao fervoroso embate de dois “Brasis”, não somente o Brasil de Lula e o Brasil de Bolsonaro, mas o Brasil das metrópoles costeiras, a invejar o lado do Oceano, e o Brasil “de dentro”, de sentimentos esquecidos perante a falta representação na classe política. 

Hirszman já mencionava isso em 1964, conduzindo uma reportagem pelos trilhos da brasilidade e a distância que os separa. É um conjunto de declarações que vista, como é instalado na abertura de “Maioria Absoluta”, instalar-se no seio dos “analfabetos”, dos “desfavorecidos”, dos “olvidados”. A praia, amontoada pelos corpos tratados e pela presunção burguesa, são apenas engodo, o filme não interessa pelas suas “vozes”, pela sua distorcida percepção do país que vivem. São o contraste para a restante intervenção. Partimos de uma ignorância para a outra, e antes de questionarmos realmente “quem são os analfabetos?”, o narrador [Ferreira Goulart] alicia-nos a entrar num mundo de desconhecidos e desconhecimentos, por entre um mercado de rua, a sua voz proclama: “Justamente por não conhecermos as suas causas, buscamos soluções absurdas e remédios milagrosos”. Haverá remédio para o Brasil?  

Sob uma montagem de Nelson Pereira dos Santos, a curta aproxima-se do seu desfecho, da sua volta, mas antes sobrevoa o Congresso Nacional, em Brasília, ouvindo os ecos das vozes de quem julgamos representar uma população. Uma "gritaria" amontoada e diluída no oblívio - a distância não apenas numa imagem, mas sim apresentada num revoltoso e silencioso grito imagético. Pereira dos Santos, colega-montador de Hirszman na sua estreia no coletivo “Cinco Vezes Favela” (com Cacá Diegues, Joaquim Pedro Andrade, Marco Farias e Miguel Borges, no mesmo ano que exerceu iguais tarefas para Glauber Rocha [“Barravento”, 1962]), explorou ainda mais esse símbolo, essa Brasília - “capital do futuro” - na sua curta linguística “Fala Brasília" (1966), sem o uso das óbvias imagens-chaves da metrópole em construção e sem definida identidade. 

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Despedimo-nos da metragem, acenamos àquela gente, porém, o filme não nos deixa impunes para com a nossa culpa, ou possível privilégio - “O filme acaba aqui. Lá fora, a tua vida, como a desses homens, continua”. Dois anos antes e do outro lado do Oceano, “Dom Roberto” de Ernesto Sousa, um dos filmes que preveria o chamado Cinema Novo português, descia as cortinas sob o mote de, “Mas ... ainda não é o fim. O fim é para aqueles que desistem", na vocação de Glicínia Quartin. Ambos, e à sua maneira, obras da resistência dos esquecidos, dos precários, dos marginalizados, e como tal fechar por completo as suas histórias é negar-lhe as suas causas, as suas vidas “penduradas”. Existe uma crueldade em deixá-los à sua mercê.

Quanto a “Maioria Absoluta”, mesmo com a acidental ironia de ser relembrado pela plataforma a poucas semanas da determinante eleição, é uma obra sobre duas identidades brasileiras no enfoque de um retrato sócio-político, tal não agradou em nada o regime militar gerado pelo golpe de 1964. O filme foi ocultado até aos anos 80, o fim da Ditadura Militar, ou melhor, censurado para a maioria absoluta dos brasileiros.