Ontem, hoje e amanhã em Bombaim
Um médico aspirante a poeta anota os seus versos do quotidiano num pequeno bloco e entrega-os à enfermeira Prabha (Kani Kusruti), num gesto de enamoramento e igualmente em busca de aprovação — talvez por confiar na sua experiência calejada nesse meio de subsistência e saturação. Antes disso, porém, reclama das dificuldades da “tão frustrante” língua Hindi, no qual está a aprender: “Kal significa tanto o passado como o futuro.” “Não arranjes desculpas. Como irás melhorar sem trabalho árduo?”, admoesta a enfermeira, demonstrando o seu entendimento sobre a importância do esforço, enquanto seguem direito para a estação de comboio, numa noite chuvosa, fim de respectivos turnos. A casa será a paragem culminar, o breve descanso antes de um novo ritual citadino que os espera amanhã [futuro], e aí, o “kal” confunde-se com estas vivências: o ontem nada é que apenas um prolongamento do amanhã, e vice-versa.
A realizadora Payal Kapadia mostra-nos, desde cedo, ao que viemos. Após a dissipação dos créditos iniciais, passamos pelas germinadas sementes documentais sobradas de “A Night of Knowing Nothing” (a sua primeira longa-metragem, 2021): entre as castas de trabalhadores, pela nocturnidade transformada em mera produção, e pelos olhares extenuados, esmagados pelo cansaço, daquela gente automatizada a existir e a preencher os seus lugares designados. É uma “alcagoita” do real, uma não-ficção — ou melhor, o tal poema do quotidiano que mais tarde será partilhado. Kapadia transforma este momento no seu “Hiroshima Mon Amour”, em que o documentário se rende à ficção, e o drama destas vidas emerge, partindo do plano geral para o individual. Prabha é o indivíduo em foco: uma mulher sem marido, que ainda assim vive com a ausência dele. Divide casa com outra enfermeira, mais jovem, uma hindu apaixonada por um muçulmano — um romance de contornos shakesperianos naquele contexto político-social. Ambas pertencem aos invisíveis desta Bombaim (Mumbai) sobrelotada: os peões destes dias que se fundem nas noites, e das noites que se dissolvem nos dias. Nada é destacável, apenas uma massa temporal uniforme, contínua, sem intervalos.
“All We Imagine as Light” proclama essa luz na omnipresente escuridão — um escape, talvez, que possa resgatar estas personagens de uma cidade que, claramente (palavra escolhida a dedo), não lhes pertence. Num bairro em construção, pode ler-se num enorme placard publicitário, adornado por uma família protótipo de sorrisos perfeitos e pele esbranquiçada (em contraste com o marcado tom acastanhado dos remediados), em letras gordas: “A classe é um privilégio, reservado aos privilegiados.” Uma e duas pedradas são lançadas na sua direcção, num gesto de resistência tão instantâneo quanto inconsequente, protagonizado por estas “inferiorizadas e pouco privilegiadas classes”. Portanto, abandona-se os arranha-céus construídos “para substituir Deus”, e estamos em terreno balnear, numa pequena aldeia costeira envolta em histórias e fantasmas, onde caras esculpidas marcam as paredes das grutas vizinhas. Há um bar de praia que serve de miradouro, onde se contempla essa “luz invisível” no horizonte, para lá de onde o Índico toca.
Nesta cisão dicotómica entre “cidade / campo”, desacelera-se a rotina, a massificação, o capitalismo sufocante que nos obriga a produzir, produzir, produzir — transformando estes corpos numa massa uniforme, desprovida de identidade para além da casta que os acorrenta. “All We Imagine as Light” emerge do documentário, transita para o realismo social subtilmente denunciador e, por fim, chega à praia, trazendo consigo promessas de misticismo, de um realismo mágico até, uma antítese à martirologia imposta pela modernização. Kapadia realiza tudo isto com mestria, paixão e delicadeza, tornando o travelling, mais uma vez, num acto político — sem nunca sacrificar o subtexto. Sentimos porque estamos com o filme, não apenas porque o vemos com o punho erguido, mas através de um observacionalismo frustrante, que nos envolve e nos interpela.
O resultado é este: A Índia de Kapadia detém várias Índias no seu interior; conhece-as bem, declara-se à realidade que a envolve, mesmo que o sonho seja bollywoodesco. E é aqui que entramos naquela subtil sequência, a saída dos “operários”, com as enfermeiras numa sala de cinema, os olhos fixos na tela, e o rosto lacrimejante e emotivo de Kusruti a centralizar o desejo de uma fantasia. É um plano que, no fundo, é mais que rotineiro no cinema corrente, especialmente entre aqueles que glutinamente procuram discursar sobre cinema. Mas, sem falar abertamente sobre isso, “All We Imagine as Light” é, na verdade, um filme sobre cinema, porque a luz imaginária não poderia ser outra senão aquela libertada pelo projetor em direção à tela. A outra realidade, a única possível para aquela gente, Kapadia sabe disso e, generosamente, entregou-a. O tal segundo cenário, o campo delineado pelo mar, por sua vez, é o outro lado da tela.