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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Oh venturoso Rei, fui sabedora de …

Hugo Gomes, 24.09.15

O Inquieto

Logo na sua introdução, quando confrontado com a questão de que ligação teria o encerramento de um estaleiro e a exterminação de uma praga de vespas asiáticas em Viana, a resposta negativa de Miguel Gomes foi dada da seguinte forma: “eu sou estúpido e a abstração dá-me vertigens“. Depois disto, e repentinamente, o realizador foge da cena como o diabo foge da cruz.

Os vinte minutos que sucedem levam-nos ao encontro de um retrato “docuficcional”, esse subgénero que a cinematografia portuguesa adotou com todo o coração. Nesse preciso momento pensamos estar perante em mais um enésimo registo etnográfico, um revisitar aos códigos canónicos do género, ou até mesmo (visto Miguel Gomes protagonizar uma sequência intimista de um filme dentro de um filme) numa reciclagem à estrutura do seu “Aquele Querido Mês de Agosto”.

Mas passados vinte minutos tudo pára. A promessa é dada em forma de “imaginem só isto” e voilá, eis que começa realmente “As Mil e uma Noites”, a prometida epopeia portuguesa que tem como base a estrutura narrativa da clássica e homónima compilação de histórias persas. Nesta versão, as histórias mirabolantes de um país arruinado pelo comando de “belzebus“, como a certa altura são descritos os governantes de Portugal, serve de substituição aos contos narrados por Xerazade: para entreter o cruel rei Shariar, a fim de alimentar a sua curiosidade e assim adiar a derradeira noite de núpcias. É um mundo fantástico criado através de uma imaginação corrosiva e trocista na caricatura e, com isso, sublinhar a “portugalidade” da sua gente. Nisto, Miguel Gomes consegue atingir a crítica social.

Dividido em três “grossos” atos, todos eles sustentados por tons distintos, começamos por elaborar uma sátira à política, não só portuguesa, como também europeia. Em “The Men with Hard-Ons” o absurdo ganha vida e funde-se com a referência persa, na qual as maldições dos feiticeiros e os fundos europeus caminham lado a lado. Depois deste “aperitivo” segue-se algo mais rústico, e igualmente surreal: “The Story of the Cockerel and the Fire”, passada na aldeia de Resende, onde um galo que canta a desoras gera um movimento social e uma onda de protestos pela liberdade de expressão. No decorrer deste episódio espalhafatoso está um trio amoroso cujas consequências são catastróficas.

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Encantados até com aqui com todos estes paradoxos e caricaturas em dívida com o surrealismo, surge-nos “The Swim of the Magnificents”, provavelmente o mais emocional e revoltado dos três enredos apresentados. O ator Adriano Luz desempenha um professor de natação que planeia os banhos do dia 1 de janeiro, um ritual local, mas que para este possui um significado mais profundo. Neste episódio, o intimismo de Miguel Gomes revela-se mais humano e corajoso em abordar algo que poderia ser motivo de atenção para telejornais ou programas televisivos matinais. É aqui que “As Mil e uma Noites” funde por completo a ficção com o seu lado mais vérité, onde os testemunhos dos desempregados, mais corretamente denominados de “desesperados”, auferem um registo coletivo, tudo enquanto Gomes faz maravilhas com a câmara.

As sequências tornam-se melancolicamente memoráveis, proclamando a extinção de um mundo fantástico e pagão e abrindo portas ao realismo do quotidiano e social, o nosso Portugal.

Terminado o primeiro trio de histórias, confirmamos o que já havia sido afirmado: Miguel Gomes é a cabeça de uma nova vaga Portuguesa. Comparando com a nouvelle vague Francesa ou não, a verdade é que há muito não víamos cinema português tão revitalizante, complexo e, sobretudo, tão criativo.

O Desolado

É entendido que o realizador do muito prestigiado “Tabu” conseguiu captar a atenção de todos ao esboçar um mundo que funde a realidade com um surrealismo caricato e sempre abrangido por um constante tom de denúncia. Esse extenso surrealismo é salientado logo na primeira história logo após do intervalo – “Chronicle of the Escape of Simão ‘Without Bowels’ (Crónica da Fuga do Simão ‘Sem Tripas’)” – no qual seguimos um fugitivo à polícia em montes de aldeias vizinhas de Viseu. Uma história que na prática soa-nos mirabolante e, contudo, familiar, na verdade inspirado num mediático caso real que fez as manchetes dos nossos jornais. Aqui, Miguel Gomes revela uma faceta mais contemplativa, mais paciente e nem por isso menos lunática, trabalhando com atores (Chico Chapas) e alguns não-atores. “Mil e uma Noites” invoca uma linguagem enraizada na nossa “portugalidade”.

Porém, o ritmo fraqueja levando Gomes, infelizmente, a cair no erro dos muitos “autores” portugueses. Mesmo assim, a narração é digna de um ar de revolta constante, ares que se prolongam ao ato seguinte, “The Tears of the Judge” (“As Lágrimas da Juíza”), uma verdadeira queda de dominós que expõe um "caldeirão" de problemas estruturais que assolam a Nação. Luísa Cruz consegue levar a sua personagem ao extremo, num misto de teatralidade com o seu ego oculto e uma vontade inerente de denúncia. Se Simão ‘Without Bowels’ foi a menos conseguida das histórias, aqui Miguel Gomes encontra a sua pequena “obra-prima”: um vórtice de bizarrices, comédia non sense e uma crítica sem receios.

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Diríamos que estamos no auge das “Mil e uma Noites”, apogeu que acalma com a passagem ao conto seguinte, “The Owners of Dixie” (“Os Donos de Dixie”), que tal como acontecera com a primeira parte [“O Inquieto”] é o último tomo onde é transferida toda a emoção antes ignorada. A jornada de um cão e dos seus donos recebe contornos etnográficos ao tentar esboçar a comunidade de um bairro suburbano de Lisboa. Três atos sob tons opostos e divergentes que indiciam uma só verdade: Miguel Gomes é um conhecedor nato de todos os códigos do cinema português, sendo óbvio que a sua carreira enquanto crítico favoreceu essa diversidade criativa, a qual não se via desde João César Monteiro.

O cinema contemplativo da genérica definição de “autor” português em Simão ‘Without Bowels’ (sem negar os traços de António Reis e Margarida Cordeiros, e todo os seus “filhos paridos”), o conto ácido e de influências teatrais de um Manoel de Oliveira em “The Tears of the Judge” e o cinema sociológico captado por um Pedro Costa ou Marco Martins na última, fazem daqui três histórias, três estilos diferentes, três razões para proclamar “As Mil e uma Noites” como um grande evento do cinema português e até mesmo mundial. Mas acalmemos, Xerazade ainda não se calou, o rei ainda não está satisfeito, a sua curiosidade é alimentada, mas não por muito tempo. 

O Encantado 

As anteriores histórias bastariam para confirmar o quão gratificante é este novo projeto de Miguel Gomes, há nele referências, estilos, alusões, um conjugado filme-denúncia, frontal, emaranhado em "lençóis" irónicos e caricaturais. Ao terceiro mandamento, o realizador guia-se novamente por essas matrizes do nosso cinema para encerrar um épico fílmico sustentado por uma militância quase guerrilheira. Portanto, reiniciamos na “paz do Senhor”, e vislumbramos o próprio mundo de Xerazade (Crista Alfaiate), a bela jovem que é obrigada a casar com um tirano e angustiado Rei, célebre por matar as suas esposas após a primeira noite núpcias. 

Para além de bela, Xerazade é também inteligente, culta e possuidora de dotes oratórios, virtudes que a auxiliam no seu prolongado plano de sobrevivência. Todas as noites, ela narra uma história sobre um país longínquo e respetivas crónicas mirabolantes envoltas, de forma entusiasmante para que o rei se encha de curiosidade e aguarde pacientemente pela noite seguinte para mais uma história, evitando assim, a mortal noite de núpcias. O primeiro plano deste arranque é quase todo ele um tributo ao cinema mais marginal de Fritz Lang, “The Indian Tomb”, para depois se incorporar na intimidade das imagens invocadas. Este mundo descrito por Xerazade, tem de tanto místico como alusivo, de caricatural como de surreal.

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Uma opção arriscada por parte de Miguel Gomes para complementar este terceiro fôlego com uma sentimentalidade e cariz distinto, para depois avançar para um profundo registo etnográfico, enquanto mergulha no submundo dos “passarinheiros”e dos seus tentilhões em “The Inebriating Chorus of the Chaffinches” e a cruza com imagens dos protestos policiais ocorridos em novembro de 2013, em simultâneo, com o relato de uma imigrante chinesa “Hot Forest“, uma combinação sobretudo bizarra mas que de certa forma fiel ao paralelismo iniciado por esta aventura: o encerramento dos estaleiros com a dizimação das pragas de vespas asiáticas em Viana do Castelo. Um paralelismo que o próprio Miguel Gomes revelou ser de uma “abstração que lhe dá vertigens“, para poder encenar de seguida o papel de realizador desaparecido.

Desaparecido, enquanto corpo, porque a alma de autor encontra-se nas mais tenras veias deste “Mil e uma Noites”, a maior epopeia cinematográfica do cinema português. E assim Xerazade se calou, sem voz ou simplesmente a curiosidade do seu monarca terminou. É o prenúncio do seu fim, a predestinada morte após a primeira noite de prazer não-consensual. O que resta dela?  Ficou um espectro e a memória efêmera do seu carrasco. O que deixou? Uma obra-prima, e digo-o sem modos nem hesitações. 

Das maiores obras cinematográficas que este triste país entre os países chegou a produzir.