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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Ofender é virtude no Evangelho segundo Verhoeven

Hugo Gomes, 24.11.21

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As histórias de freiras “histéricas”, oferendas diabólicas à Santa Trindade, sempre alimentaram o imaginário da "Idade das trevas" medieval, mais tarde aproveitadas para fomentar um subgénero cinematográfico próprio, muito em voga os anos 70, o "nunsploitation". Mas “Benedetta”, com base num livro de Judith C. Brown, por sua vez inspirado em factos reais, é mais do que a exploração da sensualidade e depravação transmitida pelos hábitos das fiéis: esta é uma produção em permanente posição de ataque aos fundamentos da Igreja.

Se a ofensa é virtude, poderemos considerar que este filme é uma catapulta devastadora, até porque a sua heresia se dilui com uma atitude jocosa pela situação, pelas intrigas, pelas personagens e pela lascividade em símbolos religiosos. Esse efeito 'trash' é um retorno à sua natureza de um velho almirante destas águas, o holandês Paul Verhoeven, o anterior realizador de 'mau gosto' (“Robocop", “Basic Instinct”), agora autor emancipado e celebrado com as graças do Espírito Santo da reavaliação da revista Cahiers du Cinéma.

É nos trajes da Idade Média, no medo constante das chamas infernais e dos prazeres carnais, que o realizador assenta mais uma demanda pela fantasia feminina, uma procissão saída do seu elogiado filme “Elle” e em confronto com a onda de conservadorismo na nossa sociedade (e isso não é só culpa dos círculos religiosos). Contudo, é na marcha contra a Igreja que as trevas de “Benedetta” cercam com uma pecaminosa satisfação, com especial atenção aos estandartes do Cristianismo: mártir e martirologia são destroçados, banhados em humilhação e distorcidos em sacrilégios.

É a profanação representada no corpo de Virginie Efira, que depois disto se torna estrela feita até fora do território francês, e na inocência ambígua da belga Daphne Patakia (“Nimic”), que estão as grandes virtudes deste filme disparatado, provocador, astuto e, sobretudo, respeitoso à velha alma 'verhoeviana' do seu realizador.