O talho self-service da Disney
Sim, há polémicas a serem abordadas, decisões recuadas ao ponto de servir a gosto ao sedento público e as críticas daí geradas, bem como a cedência às transições políticas. Há muito por onde começar enquanto contexto desta produção, só que não desejo vergar por aí — são outros tópicos e outros esclarecimentos. Gostaria, antes, de falar deste fenómeno: o dos “live-action remakes” da Disney. Para que servem? Para onde querem ir? O que se passa, afinal?
“Snow White” era, desde a sua génese, um dos mais tremidos nesta transcrição humana, não havia volta a dar, o material com que se reflete, o filme de 1937, foi um dos pioneiros da História da Animação — a primeira longa-metragem nesse género — e, para a Disney, um dos seus diamantes brutos, que tal como a Coroa Inglesa, ostenta e insufla a mística de incalculabilidade e, mesmo assim, exibida no centro de todo o ambiente museológico. Este processo de transformar as suas animações em ação real — muitos deles meras fotocópias — é, perversamente, mais do que uma simples captação de nostalgia; em termos psico-sociológicos, configura-se como uma via mercantil que se apresenta como abrigo a uma nova geração de espectadores-adultos, refugiados no medo constante do quotidiano e da atualidade, que encontram neste gesto um alívio provisório para a sua ansiedade permanente. “Aqui não vos acontece nada” — a relembrar a propagandista frase de Vasco Santana em “O Pátio das Cantigas" (1942) sob as letras garrafais de Salazar, e segurança é o que prometem: um antídoto proustiano, efémero e reconfortante.
Contudo, há também um ego e, simultaneamente, um egoísmo por parte do estúdio nestes projectos: o de se pavonear com estes contos enquanto exclusividades criações suas. Ignora-se, assim, que “Snow White”, tal como grande parte daquilo que compõe a chamada “magia Disney” (com o castelinho nos créditos iniciais em plena festividade), não é mais do que uma reinterpretação disneyliana de velhos contos, lengalengas, tradições orais ou até romances e magnus opus da literatura mundial. Mas o sucesso tem destas ‘coisas’: ultrapassa, ou melhor, sobrepõe-se e reconta a História, sob uma única perspetiva — a dos vencedores. Sabiam que a Disney detém os direitos dos sete anões? Daí que grande parte das adaptações alheias do famoso conto dos Grimm apresente um outro número desses seres amigáveis e de personalidades definidas na unilateralidade. A Disney criou a narrativa de que estes domínios intelectuais são obras suas, peças de marca registada da sua fábrica, e trata-os como tal. O público vai na artimanha e segue a lógica apresentada — os alter-factos.
“Snow White” faz dessa entrada a reinvenção da reinterpretação, com claras fidelidades ao produto que o estúdio apresentou há décadas. Trata-se de um canibalismo convicto: produzir e consumir a sua própria carne. E aqui, com o realizador Marc Webb (“(500) Days of Summer”) a dançar valsa com a sua própria insignificância autoral, assumindo-se um tarefeiro estandardizado numa obra que trespassa uma única voz. Para além de se notar, gratuitamente, a sua esquizofrenia, depois de ter sido adiado da sua data original e subjugado a refilmagens e reversões, o filme parece não querer esconder a sua desorientação — o seu dilema entre manter o clássico ou ceder ao avant-garde sociológico. Nem uma coisa, nem outra.
Artificial, falso até às costuras, sem personagens desenvolvidas e com uma abruptidade no seu final. Rachel Zegler é um boneco, Gal Gadot outro, e o resto são adereços. Nesta feita, perante um trabalho que raspa o fundo do tacho, volto à questão que me levou a este texto: vale a pena fingirmos que a Disney construiu “Branca de Neve” de raiz e é a única com direitos para a reavivar e assassinar constantemente, como bem entender?
A animação original continua lá, sem nostalgias, porque é História do Cinema a ser fabricada em frente aos nossos olhos — os seus movimentos e a perfeição com que a dinâmica destes se conjugava numa ação-narrante em 80 minutos de duração (inédito para o seu tempo), para além de ter sido um dos primeiros jumpscares das nossas infâncias coletivas (mas isso já são outros contos e recontos). Em tempos, a instituição arriscava. Hoje, reage apenas ao medo do trambolhão financeiro.