O resgate do soldado Sam Mendes
Antes de mais, de forma a enfurecer os mais céticos e “guardiões” dos bons costumes da canonização cinematográfica, podemos mencionar que em “1917” existe umas quantas lições absorvidas dos mais cientes mestres do cinema russo. Seja o esforço da representação, onde a narrativa e os elementos inseridos funcionam para operar uma ideia (assim por dizer), fugindo do individualismo do muito cinema ocidental, seja pela fascinação pelos longos planos e no fortalecimento do enquadramento como sinal de rigor técnico.
Obviamente que estamos a par da pequena “batotice” do realizador Sam Mendes que é a tradução de todo o palco de guerra a um só (falso) plano, buscando a memória de “The Rope” (1948), de Alfred Hitchcock, ou, mais recentemente, “Birdman” (2014), de Alejandro G. Iñarritu, do que a cumprida dedicação de “The Russian Ark” (2002), do mestre contemporâneo Alexander Sokurov (sim esse, num só "take" num imenso "travelling"). Mas porquê esta busca pelos russos num filme que cheira a "british" pelas costuras? Porque simplesmente esta jornada hercúlea de um mero soldado que atravessa “meio mundo” para cumprir a sua missão e salvar as vidas dos seus camaradas (tarefa ingrata em certa parte) não traz ao espectador o interesse emocional para com a suposta personagem-protagonista.
Schofield, interpretado por George MacKay, é um guia dantesco, um Virgil assim por dizer, que nos encaminha aos enumerados horrores da Primeira Guerra. Da mesma maneira que Elem Klimov executou em “Come and See”, que aproveitava a juventude inalterada de Florya para iniciar uma experiência de choque e trauma para com o espectador perante as imagens infernais com que se “deleitava”. Mas há uma diferença: Klimov operava na psicologia do seu “boneco” para conectar-se empaticamente com o espectador. Sam Mendes, por outro lado, apoia-se nos visuais, na dinâmica destas imagens, na vontade de ripostar contra o conformismo do academismo e assim, de certa maneira, guiar-se por um videojogo bélico (sabendo nós que foram os videojogos a apoderar da narrativa cinematográfica e torná-la a sua assinatura).
Sim, “1917” é um objeto virtuoso, uma vaidade na execução que, por vezes, joga contra si. Há demasiado fascínio no inferno invocado do que supostamente temor, tornando a guerra a um mero “joguete”. As imagens operadas no terreno dialogam com o seu ar de espanto, mas como “Dunkirk” (2017), de Christopher Nolan (para mencionar outro recente filme bélico pretensioso nas suas qualidades de espectáculo), é ausente de coração.