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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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O Pinochet vai nu

Hugo Gomes, 22.09.23

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No decorrer do Festival de Veneza, deparei-me com um texto, supostamente crítico, em que um jovem entusiasta presente no Lido referia múltiplas vezes, na sua impressão de “El Conde” de Pablo Larraín, o desconhecimento pela figura histórica de Augusto Pinochet. O facto de esse mesmo texto estar integrado num site que se apresenta como cobertura de um festival de cinema levanta dúvidas quanto à seriedade da crítica de cinema nos dias de hoje, ou até mesmo reflete na opção de alguns meios de comunicação optarem pela quantidade ao invés da qualidade dos seus “escribas”. Porém, são questões e debates fora deste parâmetro, mas é a partir desse pormenor, cada vez mais frequente personalidades históricas marcantes do século passado encontrarem nestas novas gerações uma certa abstração, contornos aproveitados por Larrain neste seu regresso ao Chile, em mais um “e se” a fazer sombra ao anterior “Neruda”, o qual reimaginava o poeta num policial à paisana.

Em “El Conde”, o realizador propõe uma hipotética, e sobretudo fantasiosa, história sobre a vida e morte do ditador, colocando-o nas vestes draculianas de um vampiro qualquer, ser nefasto e hediondo levitante noite fora em busca de corações frescos, solução única de preservação da sua imortalidade e rejuvenescimento. Uma metáfora fácil ao vampírico regime de Pinochet e à “seca” com que o país foi deixado após a despedida do Poder em 1990 (tendo falecido em 2006), deixando um legado, apoiado pelos EUA (deve-se sublinhar), de morte de milhares, corrupção e um golpe contra um governo democraticamente eleito na fatídica data de 11 de Setembro de 1973 (um outro cineasta chileno, Patricio Guzmán, possui um dos considerados documentários definitivos desse dia e das suas consequências - a trilogia “La batalla de Chile: La lucha de un pueblo sin arma” [1975 - 1979] - fica a recomendação). Portanto, não existe ciência nesta fantasia grotesca, Larrain, após Hollywood, volta ao ponto de partida munido de crucifixo e água benta, enfrentando, por fim, o “monstro” de frente. Desta vez, sem alusões, sem contextos históricos; uma sátira como a maior das estacas apontadas ao coração. 

Pinochet (Jaime Vadell, habitual colaborador do realizador) é uma anedota em forma de besta, envelhecido, velhaco e semi-desdentado, desejando a morte como “prego no caixão” ou o corpo a abarrotar de juventude da sua suposta carrasca (Paula Luchsinger). Já não é mais uma figura histórica; é, ao invés disso, uma criatura mitológica, nascida dos relatos incoerentes que só o seu espectro parece sobrevive no imaginário de todos; é o “papão” propriamente dito. Em outras palavras, Larrain esvaziou Pinochet, condizendo-o à estética do “espaçoso” que prevalece nos seus últimos trabalhos (enraizando uma ideia de vazio, ruinosa e algo esquecida pelo tempo, veja-se os “palacetes” artificializados de “Jackie” e de “Spencer”). Aqui, o “conde”, título inglório e blasfémico para quem cobiça realeza, é o “rei vai nu” num palacete decadente no seio de nenhures. Destino, esse, o do esquecimento, o pior que pode acontecer à sua ambição; eis o castigo de Pablo Larraín ao seu “nobre de lata”. Contudo, no limite do seu trajeto, entra mais um peão em cena, reforçando a intenção da obra, a de troçar do defunto (ou defuntos), a de acidamente distorcer figuras históricas em prol de uma causa, essa, a de despir simbolicamente o medo e, por consequência, uma ideologia. Infelizmente, “El Conde” vence como exercício, e esperneia por atenção enquanto obra política. 

Voltando ao ponto de arranque, se não sabem quem é Pinochet, não será com “El Conde” que vamos finalmente “aprender”, mas convém reafirmar que o Cinema não traz respostas; apenas nos inquieta com mais perguntas.