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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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O pão de cada dia obriga a um esforço constante

Hugo Gomes, 20.03.19

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O pão de cada dia obriga a um esforço constante, de que o homem sai significado.

Faltava pouco para Manoel de Oliveira fazer o seu grande salto, não com isto afirmando que o cineasta não era ainda, isso mesmo, um cineasta. “Douro, Faina Fluvial” (1931) é, como todos sabem, a sua entrada pela porta grande, no qual deparamos com um realizador experimental quanto à construção da lógica do Tempo. Um tempo fabricado que Oliveira teceu através do quotidiano que testemunharia nas margens do seu Douro, porém, foi também o tempo que encarregou de o valorizar. Mas Oliveira continuou, persistindo em filmes de encomenda (uma forma de subsistência) até conseguir o seu feito ficcional com “Aniki Bóbó”, em 1942, uma pausa pelo qual depois retornaria a outros projetos documentais / propagandísticos como “O Pintor e a Cidade” e “O Pão”.

Produzido pela FNIM (Federação Nacional de Industriais de Moagem) de forma a celebrar o seu vigésimo quinto aniversário, o filme foi concebido, segundo as palavras do próprio Oliveira, como a materialização da “ideia de que o pão é um rio que passa por vários lugares“. Mas a corrente idealizada levou a um trabalho de quase uma hora que não agradou, nem ao realizador, nem sequer aos encomendantes presentes na projeção especial que decorreu no salão de festas da Feira das Indústrias Portuguesas, a 28 de novembro de 1959. Para estes, foram as imagens de “pequenos ditadores” que o filme transparecia acerca deles. Para Oliveira, foi a sua abrangência que não ostentou a fluidez pelo qual trabalhara. 

“O Pão” segue a jornada de fabrico de tal suplemento “divino”, e simultaneamente em paralelo com todos os quais o destino se cruza nesta manufaturação, desde os jovens camponeses que proclamam os votos matrimoniais até ao trabalho árduo no campo, passando pela sua distribuição e os diferentes destinatários, sejam eles o guloso da pastelaria, ou a criança de rua pronta a saciar a fome. O pão de cada dia, assim como é lembrado no início do filme, o divino e a divindade juntos para reforçar a vida de uma Pátria. Claramente, a obra de Oliveira apresenta-se como um objeto de fascínio do regime da época, carregando nas vontades leccionadas por Salazar: a Família acima de tudo, Deus acima de nós e o Pão como elo que interliga os imortais e mortais. É um imagem sacra, do trabalho exaustivo e ininterrupto para a concepção de tal herança. O português a ser escravo do Pão, ao invés do oposto.

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O Pão” é isso mesmo, um rio fabricado sedento de ribeiras e afluentes, ligadas a uma só trajetória, o plebeu satisfeito com a vivência de mais um dia, somente mais um. Mas o rio planeado encontra os seus problemas de forma, até porque a foz deságua na mesma nascente. Voltamos aos campos, às mãos calosas e gastas, regressamos aos jovens ignorantes que piamente acreditam nas forças desmesuradas para além da mortalidade e o pão como carne do Messias que certo dia prometeu retornar. Mas é uma linda foz … diga-se de passagem …  os campos de trigo que ondulam ao sabor do vento como um mar agitado e igualmente sereno e as searas que chocalham perante estes; um som tão equivalente ao horizonte longínquo do Oceano. Sim, o mar que Oliveira queria chegar, mesmo que por vias não desejadas. Foi uma tentativa de recriar a desfragmentação de montagem que “Douro, Faina Fluvial”, e quem sabe guiar-se por essas mesmas linhas para reencontrar tempos outrora gloriosos. A correnteza do Douro replicada na gestação do Pão.  

Dito isto, a resposta de Oliveira surgiu quatro anos depois com uma versão curta a fim de restaurar essa ideia de fluidez. A sua primeira projeção aconteceu por ocasião da sua própria homenagem na Casa da Imprensa em Lisboa (27 de setembro de 1963). Altura perfeita para essa remodelação, porque foi aí nesse ano que Oliveira reinventou-se. Tal, à sombra da imagem do divino, “O Ato da Primavera”, hoje peça fundamental da nossa história antropológica, o registo do nosso temor a Deus que nos leva a lançar teatralmente um tributo às suas mortes. 

Nunca mais foi o mesmo. Oliveira encontrou nessa encenação, algo que valeu a pena lutar. Uma nova ideia de Cinema, um novo Rio.

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