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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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O Natal é quando a Roménia quiser!

Hugo Gomes, 06.05.25

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O Natal chegou mais cedo para a Roménia, e mais tarde para Bogdan Mureșanu. O realizador romeno, na sua primeira longa-metragem [“The New Year That Never Came”], expande um dos conceitos da sua anterior curta, "The Christmas Gift" (2018), remexendo novamente na história crucial do seu país: a Revolução de Timișoara para sermos mais exactos, os tumultos em protesto contra o regime de Nicolae Ceaușescu, que levaram à sua queda, execução, e com ele  o fim do comunismo de punho de ferro exercido há mais de 42 anos (1947 - 1989).

É novamente o complexo Titanic, onde a “catástrofe” ou a potência do evento histórico condiciona todo o enredo e a respetiva sua dramaturgia. Desde cedo é perceptível o rumo para onde o filme nos conduz, fechando-se em copas perante a cortina vermelha do The End, com a graça de uma entrada a pés juntos na modernidade (o restante imagina-se como o projeto-futuro de uma Roménia que nunca aconteceu). Mas, para quem desconhece o facto impulsor desta narrativa entrelaçada de personagens frustradas com a sua contemporaneidade (ficções fervorosas de um povo que ainda guarda a memória congelada do regime do “Tio Nick”), o filme nunca se faz maior do que é. Nunca esmaga o espectador com a sua própria ignorância, e, nisso, pode ser visto sem um pingo de consciência, ainda que o final transluz a essência de uma percepção tardia.

Talvez estejamos perante outra queda - a do movimento do realismo romeno - que fincou e fomentou todo um conjunto de cineastas: Cristian Mungiu, Cristi Puiu, Corneliu Porumboiu e até Radu Muntean (ainda que Radu Jude, outro nome fulcral desta cinematografia, seja de um movimento à parte, talvez mais próprio, mais experimentalista e menos formalista.) Mureșanu parece reconhecer essa decadência estilística, mesmo que erguendo-a por fios como um piñata a aguardar pela sua surra, para que coincida com o seu propósito.

Por exemplo, numa das intrigas, visto que as diferentes narrativas assumem-se como gags prolongadas e humanamente desenvolvidas, a estação de televisão pública apercebe-se de que o seu programa de Natal está comprometido com a dissertação da sua estrela. O realizador e os seus técnicos, perante o ultimato do diretor da estação, procuram uma solução para as filmagens. Ao longo desta projecção, as piadas e os desdéns aos tremeliques da câmara são orientados como um reparo que vai além da ficção, a toda uma estética vejamos. Até porque "The New Year That Never Came" parece beneficiar dessa câmara desestabilizada, quase guerrilheira, simultaneamente desafiando a sua própria compreensão, como se fosse um artifício forçado, necessário ao percurso.

Num tempo em que a Roménia cede à extrema-direita, podemos questionar se o anterior movimento romeno se adequa às novas orientações, persiste num cinema de guerra e afronta ou interioriza-se como ultrapassado? Bogdan Mureșanu não nos dá resposta alguma, mas faz deste Natal da Revolução um distorcido macguffin para a sua arte — cometendo ficção com a História Moderna, numa perspectiva não revanchista, mas vingativa.