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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O musical tem que morrer!

Hugo Gomes, 01.07.18

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Bruno Dumont não acredita em musicais e reflete isso nesta sua nova criação – “Jeannette, l’enfance de Jeanne d’Arc” – a musicada juventude da mais amada das heroínas de França, onde o absurdismo do género torna-se num veículo de provocação. Já vimos tais tons a serem experimentados nas suas duas últimas obras (“Ma Loute”, “P’tit Quinquin”), mas até agora nunca tínhamos sentido tamanha heresia em ridicularizar um género.

Diríamos antes que “Jeannette” é um anti-género, uma blasfémia aos musicais. Aqui, os não-atores fazem o melhor que podem nas suas cantorias. Dumont afirmou que nada fora filmado em playback, tudo é verídico, as vozes desafinadas, ou simplesmente ausentes de dotes musicais, as coreografias atípicas, algo entre o estilo metaleiro e do frenético trance, as questões religiosas discursadas com uma extrema opacidade e uma deselegância de toda esta natureza musical ilustrada num cenário apenas, citando constantemente o seu anterior filme (“Ma Loute”).

Jeannette” é o “Je vous salue, Marie” de Dumont, uma afronta ao sagrado, a desmistificação do estabelecido, a prece de Joana D’Arc (Jeanne Voisin) cuja divindade que apela encontra-se do outro lado da tela, quebrando a “virginal” quarta barreira para nos trazer o mais mortal dos deuses – o espectador. Por outro lado, a comédia involuntária aqui exposta tem o seu quê de voluntarismo. É a História relatada como um experimento e não uma rigorosa reconstituição. É a coragem de ser ridicularizado, por ele próprio.

Talvez seja esta a obra mais desafiante da carreira do realizador, e a mais inacessível. A resposta que precisávamos da ilusão onírica tão presente no género, aos “La La Land” que perpetuam uma memória cinematográfica, "Jeannette" responde destruindo todo esse legado, rabiscando e delineando a partir do zero. Vai ser difícil recuperar o fôlego para futuras incursões musicais depois disto, e muito mais a forma que olharemos para Joan D’Arc no cinema, heroína tão celebrada em importantes trabalhos como os de Dryer, Bresson e até (porque não) Besson.