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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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O “monstro” num mundo de monstros!

Hugo Gomes, 07.11.14

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No primeiro vislumbre do cirurgião Treves (Anthony Hopkins) sobre o deformado “Homem-Elefante”, o seu olhar congela. Não é um horror nascido do medo ou da repulsa, mas antes da consternação perante tamanha desgraça humana. Um olhar de piedade, um pedido silencioso de misericórdia. Como espectadores, sentimos essa súplica: a súplica por uma criatura que, no fundo, não tem nada de místico ou monstruoso – é apenas um homem, condenado e aprisionado no seu próprio corpo. Neste instante, Hopkins oferece-nos humanidade e esperança, mas também um dilema moral: no papel do respeitado cirurgião londrino, ele resgata John Merrick (John Hurt) de um espectáculo de aberrações, devolvendo-lhe alguma dignidade. No entanto, à medida que tenta ajudá-lo a ser aceite por uma sociedade que sempre o repudiou, Treves começa a questionar-se, se estará, de alguma forma, a perpetuar o mesmo ciclo de exploração que condena?

Baseado numa história real tão trágica quanto extraordinária, “The Elephant Man”, de David Lynch, é uma obra sobre o lado mais animalesco da humanidade – um retrato de uma sociedade preconceituosa, que valoriza a estética acima de tudo, mas que, paradoxalmente, também se revela capaz de aceitação. Apesar de ser um filme do início dos anos 80, “The Elephant Man” emula a grandiosidade dos verdadeiros clássicos de Hollywood: filmado a preto e branco, com uma mise-en-scène cuidada e pausas narrativas intensas, comporta-se como uma obra atemporal.

Lynch, hoje reconhecido como um dos mestres do surrealismo cinematográfico norte-americanos (o lynchiano que cunhou com afinco), entrega aqui o seu filme mais acessível em termos narrativos. Ainda assim, a sua marca está presente: a evocação fantasmagórica da industrialização, o desconforto existencial, a atmosfera opressiva. Mas, acima de tudo, “The Elephant Man" é um dos seus filmes mais confrontacionais, tristes e crueis. John Merrick (um irreconhecível e extraordinário John Hurt) enfrenta um mundo habitado por monstros de carne e osso – não aqueles das feiras de horrores, mas os da sociedade dita civilizada. O realizador arranca desses momentos de brutalidade uma carga emocional impressionante, amplificada pela banda sonora de John Morris e coroada por um final arrebatador ao som de Adagio for Strings, de Samuel Barber – tema que, anos depois, voltaria a ser um protagonista (“Platoon”, de Oliver Stone).

Depois de “Eraserhead”, um pesadelo industrial onde Lynch explorava a fobia à deformidade e à paternidade, “The Elephant Man" marcou a sua transição do circuito underground para a ribalta. Apenas três anos após a sua estreia nas longas-metragens, Lynch conquistou um vasto público e a atenção da Academia, garantindo ao filme oito nomeações aos Óscares, incluindo Melhor Filme, Melhor Realizador e Melhor Ator para John Hurt. Uma obra mestra e de afirmação que, para além de consolidar a carreira de Lynch, se impõe como um conto negro, miserável, mas onde ainda persiste uma réstia de esperança. De uma beleza triste inimaginável.