Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O "Macbeth" nipónico

Hugo Gomes, 13.10.20

6e9oyaalmr641.jpg

Desde o western algo "fordiano" que resultou nos mais ambiciosos exercícios de jidai-geki [o subgénero de samurais e senhores feudais], passando pela literatura existencialista russa como Dostoevsky, ou, como em "Throne of Blood", a tragédia "shakespeariana", Akira Kurosawa nunca escondeu o seu fascínio pela cultura do Novo e Velho Mundo, procurando e requisitando influências e inspirações, servindo de base, sobretudo espiritual, para muitas das suas obras. Disposto como um "Macbeth" japonês, Akira Kurosawa extraiu o tormento de um general “promovido” a Shogun [o senhor feudal] por vias de uma intensa e delirante sede de poder, incentivado pela profecia de um espírito errante. Para esta “tacada” do legado de William Shakespeare, o cineasta descartou as diretivas da teatralidade clássica do dramaturgo, impondo no seu lugar os contornos do “noh”, um misto de teatro e dança tradicional.

Portanto, em “Throne of Blood” encontramos um rigor de palco e de coreografias mecânicas que transmitem uma sensação de artifício teatral, que Kurosawa aproveita e enquadra numa técnica de “olho cheio”. Este não é um dos seus filmes mais detalhados e ambiciosos em questão de "mise-en-scène", mas está entre os projetos mais embebidos nos gestos e presenças dos seus atores, nem que seja pela loucura raivosa transmitida por um imprevisível Toshirô Mifune ou da espectral Isuzu Yamada, como a alternativa da Lady Macbeth (cujo o omnipresente som do seu apertado vestido de veludo a acompanha em todos os seus movimentos).

Kurosawa compôs a sua definição de “teatro filmado” num misticismo inabalável e criativamente simbólico. As batalhas, que ocorrem fora do ecrã e cujos resultados são proclamados por mensageiros atribulados e aflitos servindo de anúncio para a nossa tumultuosa tragédia, revelam um cuidadoso espetáculo de palco que resultou num dos filmes mais espirituosos da carreira do cineasta.