O Livro das Imagens
C'est pas moi (Leos Carax, 2024)
Preciso de descarregar… deixem-me lançar o pedregulho ao charco antes que seja tarde demais … eis o “Livro das Imagens” que Godard nunca conseguiu fazer! Agora sim, podem arrancar cabelos “godardianos”, acusar Carax de ser um enfant terrible, um trapaceiro imitador que se encosta à sombra de Jean-Luc para o sugar numa (des)pretensiosa autobiografia. Ou, por outro lado, podem procurar-me, ameaçar-me, ou declarar-me morto no oitavo círculo da cinefilia. Quem sou eu para vos persuadir de tal realidade? Aquela que, através dos meus olhos, encontra em Carax o que Godard não alcançou nas suas últimas voltas neste espaço terreno chamado Vida: a humildade perante a mortalidade. Não é preciso responder a Joan Crawford em "Johnny Guitar” (Nicholas Ray, 1954) para esvaziar o cinema da sua arte ilusória, onde cada filme é um truque de ilusionismo com segundas intenções. Carax não se coloca no intuito de sobrepor-se a esses trabalhos, a essas histórias, ou a essas cinefilias com um ar de absoluto eruditismo.
O cineasta de "Les Amants du Pont-Neuf" (1991) responde para lá do Cinema à pergunta implícita pelo Museu Pompidou: “Por onde anda?”. E, por sua vez, dirige-se ao seu próprio “eu”, numa tentativa de encontrar uma resposta definitiva nos leitos de um filme-testamento. Talvez seja de um encontro com Godard, do qual o realizador não é definitivo quanto a essa certeza, mas a intenção da reunião é clara ao longo do filme: manejar as imagens, despi-las, recentrá-las na sua reflexão ou colecionar a parafernália que as acompanha — uma fórmula profundamente godardiana.
Carax sente o tédio nas veias e, tal como o pombo de Roy Andersson, decidiu “pousar no ramo e reflectir sobre a sua existência”. Sobre o que significa e como se recoloca neste Mundo … e que Mundo, de facto! “C'est pas moi”, como o título jocosamente sugere, soa como a inversão do cliché da ruptura amorosa: “Não és tu, sou eu”. Aqui, porém, é: “Não sou eu, és tu”. E quem é esse “tu”? O Mundo? Talvez. Porque, desta existência, o Mundo ferve… fervilha em ódio de várias colorações políticas, atravessando épocas e bailes. Putin, Trump, Netanyahu (“Porquê ele?”, pergunta um membro da plateia. “Porque não?”, responde Carax do outro lado da sala perante o público do festival), e, obviamente, Hitler. Os agentes do caos, os semeadores do ódio e dos odiáveis, e, nesse quadro, cabe também a vítima, Roman Polanski, sobrevivente do Holocausto, que por sua vez se converte no que sempre fugira: um homem de ódio. Será o ódio parte da nossa natureza humana?
Ao longo de 40 anos de carreira, Leos Carax autobiografa as imagens da sua autoria — de “Mauvais Sang” (1986) a “Annette” (2021), passando por “Pola X” (1999) e “Holy Motors” (2012). Denis Lavant, o seu guia espiritual, permanece presente como o autêntico Monsieur Merde, que dialoga com a loucura enquanto solução para a sanidade e progressão humanas. Por via dessa retrospectiva, satura-se, a televisão é o símbolo desse excesso imagético, a mão do autor promovido a sombra perante o ruído branco transmitido pelo pequeno ecrã, Godard tinha postura idêntica [“Prénom Carmen”, 1983], um abraço à ferramenta frente do seu tempo, hoje, o televisivo, como a estagnação do mesmo. A televisão foi só o paciente zero, o Cinema virou o sintoma seguinte, a sua banalidade, a corrói, revira as suas entranhas e estabelece um fio condutor da própria imbecilidade.
C'est pas moi (Leos Carax, 2024)
Prénom Carmen (Jean-Luc Godard,1983)
Prénom Carmen (Jean-Luc Godard,1983)
Carax não aponta directamente aos agressores do Cinema, mas está implícito quem são, onde estão, e para onde vão. Marvel não ficará com a culpa toda, mas detém parte desse cartório. extraviaram desse propósito, são apenas umas, e muitas, para tal segue-se às origens, a Eadweard Muybridge, ao cavalo em 12 fotogramas, e corta-se para Lavant correndo feito louco na bravura de “Modern Love” de David Bowie em 24 frames por segundo. Por mais punk e moderno que seja, Carax liga-se diretamente à génese das imagens em movimento. Num mundo de ecrãs cada vez menores, clama-se por um olhar puro, o Olhar de Deus: aquele que observa a vida, o movimento e as mulheres com devoção, acompanhado por “Sunrise” de F. W. Murnau (1927), mais um clássico para sobressair essa ideia de pureza em período de hibridez.
Carax declara amor ao plano subjetivo. A nuca de Kim Novak na lente de Jimmy Stewart [“Vertigo", 1958] é a deusa encantatória que o realizador confessa nunca ter conseguido reproduzir: “Nunca fiz um plano subjetivo nos meus filmes…” e continuando nessa jura amorosa, conforma-se com o intitulado “plano déjà vu”. Mas onde fica o coração? O eventual aforismo tem uma contradição, o único dos seus planos subjetivos … e que plano? Porque o único plano subjetivo de Carax… que plano! Em “Mauvais Sang”, o rosto angelical de Juliette Binoche aproxima-se lentamente. Cada traço daquela face — os olhos, o nariz, os lábios, o sinalzinho, a pele brilhante — convida-nos à contemplação. Ali, vemos Deus! Ou melhor, olhamos para ele com os tão procurados Olhos de Deus. Mas ainda não acabou. A viagem oferece um brinde: a pequena Annette, que corre — ou melhor, voa — como rima à corrida de Denis Lavant ao som de “Modern Love”, assistida pelos seus kurokos (manipuladores de marionetas no teatro Bunraku). Esta é a imagem que persiste.
“C'est pas moi” são 40 minutos de imagens, sejam retalhados, sejam de origem, em colisão com as imagens banais do nosso redor, prescreve-se como um antídoto mas não se assume totalmente essa responsabilidade supra. Carax, por mais identificável que seja essa ‘viagem’, ele não fala para nós, e notamos isso, porque ao longo destes 40 minutos, a sua voz dita cavernosa aborda uma espécie de auto-psicanálise, há nele o pairar de uma presença paternal, de um “pai ausente” porventura. “O cinema é o lugar dos pais mortos”, da autoria de Serge Daney, e para Carax, o seu fantasma … um pouco banal até. Mas quem não o é nos dias de hoje?
Horse in Motion (Eadweard Muybridge, 1878)
Mauvais Sang (Leos Carax, 1986)
Annette (Leos Carax, 2021)