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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O encontro da ficção com o documentário ... ou será o oposto?

Hugo Gomes, 07.01.25

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Não é a primeira vez (nem sequer a segunda) que o cineasta cambojano Rithy Panh se aventura nas densas “florestas” da ficção, mas será legítimo questionar se é realmente ficção de que estamos para aqui a falar? Em termos estruturais, formais ou até mesmo semióticos, “Rendez-vous avec Pol Pot" é uma ficção nessa lógica de mercado ou do tratamento narrativo, mas é por via dessa encenação (chamaremos assim para o representar adequadamente) que o realizador recita a sua longa “tese” documental.

A trama segue a chegada de três jornalistas franceses (Iréne Jacob, Grégoire Colin e Cyril Gueï) à Kampuchea Democrática, em 1978, a convite de Pol Pot, líder do Khmer Vermelho faz-se com a mesma precisão que o género documental inteiramente instalado, conectar-se com uma vivência nunca escondida do realizador, da sua intenção com a verdade que tão bem conhece e as vozes silenciadas o qual incentiva a berrar para “romper” os seus cativeiros memorialistas. É nessa bravura que se enverga por terrenos conhecidos, temas comuns, Panh como o Panh que de tão familiarizados estamos. 

O filme narra essa jornada desde a cena inicial, em que os jornalistas estrangeiros esperam numa pista de aterragem desolada — rotas-fantasmas, por assim dizer — pela “comitiva de boas-vindas”, carregados de suspeitas no goto. Mais tarde, diante de um teatro de políticas encenadas “para francês ver”, de aldeias artificialmente compostas e quintas utópicas, tudo serve para reforçar a ilusão de uma realidade idealizada. Contudo, um desses visitantes (não tão convidativos, comenta-se à parte), um fotógrafo de câmara em punho (Gueï), atravessa os limites do permitido. Ao chegar ao ponto mais distante e próximo da fantasia vermelha, num clique, capta uma realidade antípoda, a sombra emitida por detrás da fachada. O filme não faz uso dessa mesma representação, substitui a ficção por outros efeitos, sejam imagens de registo, horrores arquivados, seja pela igualmente reconhecida maquete “panhiana”, a tal “imagem que falta”, irreproduzível, despida da sua forma mas nunca do seu significado, os atores viram bonecos, os cenários viram simulações, a ideia resiste à imposição de uma estética farsesca, mas nunca a falsidade das declarações.

Retornamos, então, à pista vazia, não à "imagem inicial", mas à sua réplica-ideia de agressiva solidão. Quando finalmente a entrevista acontece, de maneira intermitente e sempre adiada, o vazio empático permanece. O diálogo é irregular, inatingível e incomunicável. Pol Pot (cuja voz é do próprio Rithy Panh) fala para si mesmo, enquanto os tradutores transmitem as palavras já moldadas pela máquina ideológica. No encontro mais íntimo, entre o ditador e o seu 'pen pal' equivocado (Colin), a conversa embica violentamente, a unilateralidade domina e as convicções inabaláveis de um homem trancado nas suas próprias ideias sufocam o espaço e reforçam o medo que este Poder moralmente corruptivo impõe.

“Rendez-vous avec Pol Pot" é um objeto fantasmagórico que, como os melhores filmes políticos contemporâneos, transforma o passado numa história do presente. Pol Pot foi um ditador de fantasias, e este mundo que ele criou foi moldado pelas suas ambições desmedidas. Hoje, sem mencionar nomes, não é difícil encontrar quem deseja criar a sua soberania com ou sem convicções. 

Quanto à sua essência, Rithy Panh preserva um outro poder, o da imagem, também ela, com ou sem convicção.